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domingo, 27 de dezembro de 2015

O CORAÇÃO É TEU INIMIGO



O CORAÇÃO É TEU INIMIGO 



Não escuta teu coração – esse verme que engana até o mais cético dos céticos.
Não, não escuta esse órgão demoníaco que só serve para nos enganar.
O cérebro, esse sim, é um amigo verdadeiro que não te trai não te leva a abismos infinitos.

Não, o coração não é um bom lugar para se estar em noites de chuva, em noites com luar, prefira um café quente ou dançarinas de cancan, nunca esse órgão a lhe esmurrar.

Não, não queira ter amizades com ele, não lhe dê liberdades, nem regalias, queira distância, não o cumprimente pela manhã, deixe-o fazer seu trabalho e só.

Quem quiser ter um dia péssimo se socialize com esse sujeito, por isso eu digo, reafirmo e reafirmo: Não escuta teu coração, porque ele te leva a lugares perigosos, a pistas sem faixas para pedestres ou semáforos, a tormentas que não findam.

O coração foi inventado para que nos sintamos sós. Deus poderia ter colocado um relógio, uma pedra ou um caroço de manga em nosso peito, mas não, preferiu esse músculo que nos esmurra por dentro. 

O coração é meu pior inimigo;
O coração é o que de mais temo dentro dos meus extintos;
O coração, esse lugar desprotegido que me faz agonizar nas noites só de domingo.
Coração, coração, coração, inimigo que me habita, inimigo que me mutila, inimigo da razão.

Marcos Martins.

domingo, 20 de dezembro de 2015

É APENAS POESIA


É APENAS POESIA


Não se assuste querida é apenas poesia.
Não, não tenha receio de me dar à mão e juntos pularmos por sobre a lua.
Não tenha medo querida é apenas meu Eu lírico gritando essas coisas sem sentido, dizendo que está morto e se sente vivo apenas quando está dormindo.

Não, não sou a poesia que escrevo, mas sinto dor, medo e tenho lampejos, mas é tudo controlado – assim como os parnasianos faziam.
Não quero uma bebida, se bem que um bom vinho cairia bem.
Não se assuste querida é apenas a poesia saindo de meus poros. Sim, o poeta é um fingidor, mas a dor é deveras que respingar na alma.

Não sei por que meus dedos doem, não sei por que escrevo se poesia não é lida e se ninguém quer lançar um poeta vivo.

Tudo bem vou ter cuidado ao atravessar aquela rua sem semáforo, prometo olhar.
Não posso deixá-lo ir, onde ele habitaria?

Não amo mais meu Eu lírico que você querida, mas é de cumplicidade que estou falando, não de fluidos.

Tenho que continuar escrevendo, não importam os motivos, não sou eu é meu Eu lírico.

Não sei como vai terminar essa poesia e para falar a verdade não me importo, pois o que importa é fazer nascer à poesia, nada mais importa.


Marcos Martins.


segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Ressaca da Black Friday


Ressaca da Black Friday


Recife, 28 de novembro de 2015


– Bom dia.
– Bom dia.
– Eu queria saber o preço do último livro do Mutarelli, eu não sei o nome, mas se você me mostrar à capa eu sei.
– M-u-t-ar-e-l-e.
– Não é assim que se digita é com dois l e um i.
– M-u-t-a-r-e-l-l-i. Assim?  
– Isso.
– É esse aí, O Grifo de Abdera?
– O senhor vai querer?
– Vou sim.
– Deixa eu ver aqui.

Assim fomos para a seção de literatura nacional.

– Como é mesmo o nome do livro – perguntou a vendedora, sempre solícita.
– O Grifo de alguma coisa, deixa eu vê lá no computador e volto pra te dizer – disse e fui quase correndo.

Mutarelli coloca cada nome doido nos livros dele, pensei.

– O grifo de Abdera – falei voltando rapidamente.
– Ele é escritor regional?
– Não, ele é paulista e fuma.

Tentei ser engraçado. Não surtiu efeito.

– Não estou achando. O senhor não quer outro livro? Temos ali a seção dos mais vendidos, só tem best seller.
– Não, obrigado, vou ficar com o fumante mesmo. Ele é o cara que escreveu o livro “O cheiro do Ralo”, que virou filme com aquele ator que dublava a voz do Charlie Brown, do desenho do Snoopy – eu acho que era ele. O cheiro do Ralo é aquele filme que o cara chora abraçado a uma bunda de mulher.
– Nunca vi.
– Ele é escritor regional?
– Não, é paulista e escrevia HQ’s, e gosta de gatos. Eu não gosto.

Pensei em dizer que não queria mais o livro, que iria mudar a compra e dizer o título de um de meus livros que foi rejeitado por todas as editoras do mundo. Mas ela estava tão empenhada. Seria maldade. Pura maldade.

– O senhor não quer outro livro, têm uns bons ali na seção dos mais vendidos.
– Só tem best seller?
– Sim.
– Quero não. Quero o último do Mutarelli.
– Deixa eu ver aqui.

A vendedora abriu uma portinha onde estavam vários livros, era um tipo de estoque, como se fosse à parte de baixo de um guarda-roupa, só que ao invés de roupas intimas havia vários livros. E lá estava ele, O grifo de Abdera, soterrado por três livros.

– É esse?
– Deixa eu ver a capa. É sim.

Ela me deu o livro e fui pagar no caixa, mas a vontade que tive mesmo, e nem sei o porquê, foi de sair correndo, sem pagar porra nenhuma.

Do jeito que o Mutarelli é tímido, acho que aquele lugar escondido onde estava seu livro era o lugar mais confortável para ele estar, pensei e fui pro caixa, torcendo pra que meu cartão não tivesse com o limite estourado.




Marcos Martins.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

SINAPSES


SINAPSES


Hoje eu quis morrer por fora, já que estou morto e decrépito por dentro desde mil novecentos e noventa e três – ano que descobrir que não se deve sonhar.

Tudo acontece de forma fugaz, dou um clique e vejo todas aquelas fotos felizes; todos aqueles sorrisos felizes que nunca vou dar; todos aqueles lugares que nunca vou estar; todos aqueles quatro mil novecentos e noventa e nove amigos que nunca vou ter; todos aqueles momentos aprazíveis que jamais irei participar.

Hoje, eu quero morrer, não quero mais viver nesse mundo onde todos fazem revoluções pessoais, onde todos têm argumentos rasamente irrefutáveis para tudo – Ingmar Bergman tinha razão, por isso morreu de forma tranquila.

Cansei de tudo.
Cansei das coisas.
Cansei de ter os ossos quebrados e o espírito dilacerado – sorrir já não me conforta mais – sorrir me maltrata, me deixa com escoriações faciais.

Hoje, eu quero desistir, estou tão sem forças, quero sentar e ficar petrificado (Vem Medusa e flerta comigo).

Não quero mais ser notado, apenas quero sentar e ser esquecido até não mais existir, até não saberem distinguir se já vivi ou se fui um déjá vu esquecido.

Aqui, deixe-me aqui e vá. Vá! Pois não tenho mais vontades, tudo é tão clean no mundo dos bits; tudo é tão cinza no meu, onde as polaroides estão extintas, onde o concreto não faz sentido, onde sorrisos não fazem mais sentido, onde crianças mortas em guerras santas nunca fizeram sentido, onde o verbo “amar” é conjugado sem sentido, onde o verbo se fez carne e não mais parou de sangrar.

Não morro,
Não me sinto vivo,
Me machucam todos os olhos perdidos.
Carne que sangra, sangra sem sentido.
Não morro,
Não me sinto vivo.



Marcos Martins.

sábado, 21 de novembro de 2015

O que esperar do agora


O que esperar do agora


Ontem um cabelo de anjo me feriu mortalmente. No início achei até divertido sangrar, pois apenas se senti vivo quando se sangra.

Ontem, com a pena de um anjo escrevi o poema mais lindo do mundo, só que ninguém quis ouvi-lo. Tudo bem, não se pode ter tudo em uma única vida.

Ontem, foi tão bom, apesar de tudo, foi tão bom. Fiquei em paz com o resto do mundo e por uma fração de segundos esqueci o quão demasiados desumanos somos.

Ontem foi o dia.
Hoje é um dia sem sentido e por isso mesmo me sinto perdido olhando todo esse sangue de mim se exaurindo.



Marcos Martins.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

ALI


Ali

Vou ali. É ali, na esquina queimar mais um sem voz que grita a toa.
Vou ali. É, vou ali, na penumbra, buscar corpos ocos de tanto lhes dizerem que são nada – luz fraca que rasga a madrugada e bem nunca me faz.

Sim, vou ali. Ali. Na esquina, onde homens se devoram por um prato de passarinha, por um tubo de cachaça, se digladiam – palavra linda que descreve de forma camuflada a desgraça.

Vou ali, é ali, naquela esquina onde Bil mijou ontem e nenhum cachorro mais quer mijar.

Vou ali, é, ali, na esquina onde putas ganham a vida – arriscando a vida –, labutando para tomar um pedaço de pão das mãos do diabo que sempre sorri antes de machucar.

É, vou ali naquela casa, que fica naquela esquina, perto daquele poste, que dá pra quela outra esquina, dentro daquele vazio que a todos consola.

É. Vou. Já não posso mais ficar. Vou me lançar na selva de pedra sem Deus.

É. Vou. Ali naquela esquina onde tudo é permitido. Mas tem que ser por baixo das saias das virgens, sem que ninguém veja, do contrário é errado.

É. Vou ali naquela esquina, onde me perdi em uma tarde de um dia sem data.

É. Vou ali. Na esquina dentro de mim.

Marcos Martins.


segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Acabei de ler a coluna de estreia de José Castello, no Suplemento Pernambuco. Visceral! Acabei tomado pelo texto e pari essa poesia, logo abaixo:



ESCREVO


Eu escrevo com sangue na alma;
Escrevo como quem nasce e morre todos os santos e profanos dias; Escrevo, escrevo e escrevo e depois me deito exaurido, com os dedos dormentes, com a mente entorpecida, preso ao mundo, às vidas que criei – mas nunca foram minhas. 

As palavras são livres e livre é minha escrita.
Livre é meu espírito – preso a esse corpo que me serve apenas para acomodar os ossos doloridos. 

Escrevo para não enlouquecer, pois escrever para mim é o verdadeiro sentido de se estar vivo e não perder-se nesse mundo de lobos famintos.

Escrevo com sangue – com todo o afinco;
Escrevo com ódio – com amor escarnecido;
Escrevo porque preciso sentir-me vivo;
Escrevo, escrevo, escrevo me exaurindo, passando para o papel minha essência, deixando a literatura em todo lugar – tangível ou intangível –, não importa, porque o que importa é escrever e que o escritor seja esquecido.

Marcos Martins.

(Quem quiser ler o texto, eu recomendo. Aqui! )

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

II

II


 
Eu já disse, mas vocês não me ouviram;

Eu já falei, mas todos riram.

Esse meu peito me prega peças sórdidas e sórdida é uma palavra linda e forte, mas para mim é sem sentido nesse momento frágil em que fico encolhido.

Bom é bom, adeus, adeus, sei que deveria ter dito isso anos atrás, mas o céu continua o mesmo e eu só mudei um pouco - me olha e diz se sou o mesmo tolo ou um tolo renovado.

Abelhas trabalham sem parar, eu nunca trabalho e nem gafanhoto sou.

Frases verdadeiras poderiam ser ditas agora, mas, minha vida sempre foi uma grande mentira.

Para que conhecimento se o tempo passa e os erros pioram com o passar dos séculos.

Nunca saberei por que piso esse chão, nem o porquê de sentir que estou sempre perdido.


Marcos Martins.

domingo, 11 de outubro de 2015

V ato

V ato


Ignore-me, sou tão louco.

Sou tão compulsivo, tolo!

Não há intrigas, não há discórdia em mim, sou meu próprio amigo moribundo que espera atenciosamente pelo recomeço, meio, mas só sente o fim.

Justas essas frases insolentes não são, insolência também não.

O fruto que tanto busco ficou podre de tanto me esperar, não posso voltar, a sentença já me foi dada.

Sou louco? 

Sou louco! 
Tolos, não!
Sou só aquele que enxerga de mais na neblina densa como lama. 

Marcos Martins

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Poema 29

Poema 29


O poeta é um ser solitário, cheio de amor e ódio, ira e afagos abafados.
Sente dentro de si, Deus e o diabo. 

(Seu céu é tão instável).

O homem sem nome se acha poeta, mas os verdadeiros poetas desprezam este carma, sonham em ser livres dessa prisão sem grades, trancas ou chaves - um carma que nos mutila aos poucos.

Choro, mas engulo o choro.

Ah! Como queria viver de pensamentos tolos e ser mais um na multidão. 

Como almejo ser um tolo feliz, não um poeta triste como sempre me fiz senti.

Marcos Martins

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

UM MOMENTO DE LUCIDEZ DENTRO DO ESTADO EMBRIONÁRIO DA INSENSATEZ


UM MOMENTO DE LUCIDEZ DENTRO DO ESTADO EMBRIONÁRIO DA INSENSATEZ



Um copo d'água, um copo d'água, por favor, mesmo que venha em um copo de requeijão;
Um copo d'água, um copo d'água, por favor, mesmo que venha contaminada pela cólera humana;
Um copo d'água, um copo d'água, por favor – por mais que mais pessoas tenham sede, eu quero beber antes que todas.

Uma brisa que me toca, faz minha pele acordar.
Uma única certeza esculpida – a de que mais sangue vai jorrar.

A natureza nos devora dia a dia, dia a dia; e aquele garoto que não volta com os feijões mágicos para que eu possa sair daqui, deixar tudo para trás e quem sabe voltar a sorrir, não chega nunca.

Não, eu não sei que horas são ou se tudo voltará ao normal. Mas o que é normalidade dentro de um mundo de verdades impostas? O que é normalidade dentro de mentes duvidosas, que conduzem rebanhos a matadouros sorrindo, sem saberem que não há paraíso; que não há inferno; que você é seu próprio demônio dormindo.

Um copo d'água, um copo d'água, pelo amor do deus que você afirma ser o único que deve ser seguido;
Um copo d'água, um copo com água, água para lavar-me, para limpar-me de todos esses gritos abafados dos excluídos, enquanto seguimos fingindo não termos ouvidos.


Marcos Martins.

Poesia em homenagem a todos os que deixam sua pátria por causa de guerras.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

FELICIDADE SEM LEMBRANÇA


FELICIDADE SEM LEMBRANÇA


Chovia. É. Chovia.
Havia um sabor. É. Havia um sabor.
Crianças brincavam e sorriam. É, sorriam.
Existia amor. É. Existia.

O vento sopra, toca o rosto do homem que definha dentro das areias do tempo e já não lembra quando aprendeu a andar. Toda brisa é única.

Chovia. É. Chovia?
Havia um sabor, havia?
Crianças brincavam e sorriam. Crianças... sorriam?
Existia amor?

No peito, o vaco;
No vaco, o acaso;
No acaso, saudade;
Na saudade, lembranças em um corpo que não sabe se chovia, se havia um sabor.  



Marcos Martins.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

O BICHO


O BICHO


Eu posso ser como esses bípedes. Ser gente, assim, gente.
Se eu soubesse me vestir, assim, feito essa gente, feito gente. Andar igual a eles, assim, feito gente. Sorrir assim feito eles, desse jeito bobo, eu poderia tudo. Posso sim.


Se eu faço isso, posso dominar todos. É só mostrar minhas presas e pronto. Mas estou preso aqui, preso por trás dessas grades frias, amofinando, rosnando de raiva, e todos aplaudindo.

Fico aqui agindo feito bicho que sou... Mas eles também são bichos! Só que soltos pra poder matar sem culpa.

Marcos Martins.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Dialogo



"E ai, Marcos, quais foram os planos para à noite?"

"Estudar."

"E ai, estudou?"

"Nada, escrevi duas poesias"

"Isso vai te ajudar em quê?"

"Não as fiz para me ajudar, as fiz para esgotar a alma, caso contrário explodira ". 

"Surtiu efeito mesmo?"

"Por enquanto sim, mas tudo dentro de mim ainda grita, mesmo que de forma silenciosa, ainda grita."

Marcos Martins.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Pungente


Pungente


Não sei fazer poses confortáveis para sair em retratos de família. Na verdade nunca consegui relaxar por completo. Vivo como se tentasse conter o choro, como se tentasse, tentasse e para não mais me cansar usasse a elipse para sentir um conforto artificial, desses que só os gramáticos entendem. 

Por que tenho tantos “porquês” dentro da alma. Por que nunca sei quando usar o porquê, se junto, separado, com acento, sem acento. Na verdade sei é o porquê, é que sou um “por que”, um que não se pode responder.

Não sei sorrir de piadas bobas, na verdade nem lembro a última vez que sorri de verdade, ou se já sorri de verdade, ou se já sorri. Só sei fazer poesias e para isso não há serventia, não, não há. Não há mais lugar para se por um poema, não com essa fugacidade que dilacera nossa degustação, essa fugacidade dos dias que não se dorme sem pensar, pensar e pensar... tudo é tão ontem.

Gostaria de resolver minha vida com uma só palavra. Sim, poderia ser “morte”, mas não quero a morte, por mais sedutora que seja não quero a morte. Mas estou com o porquê aqui, é, bem aqui, nesse músculo pulsante (pungente). 

Quando o sinal abrir, não terei mais motivos para atravessar a rua.

Como gostaria de saber ficar confortável em fotos de família, mas não tenho mais família, não aquela como nas fotos com meus avós - todos se foram e só fiquei eu para guardas esses sorrisos em minha lembrança, sem ter a certeza se já sorri.                  

Gosto de imaginar você a tocar meu corpo, a sutileza de teu toque me faz sentir vivo, porém a realidade da aspereza de tua mão me desconcentra sempre que começo a escrever versos como este, que o que importa não é o entendimento do cérebro e sim o sentir do ser infinito que vive dentro de nós, que nos faz olhar no espelho e mesmo em um dia nublado faz sentirmo-nos não só reflexo, mas algo além da carne que nos recobre os ossos.

Marcos Martins.

domingo, 20 de setembro de 2015

RAÍZES POÉTICAS


RAÍZES POÉTICAS

O que me resta é torcer para que meus versos possam ir mais longe que meu corpo cansado (morei a vida toda na mesma casa e agora nessa faze crepuscular ele já não é mais familiar).

Quando menino morria de medo de cemitérios, achava que ao entrar em um não conseguiria sair nunca mais – e viver com os mortos me assustava, não por todos estarem mortos, mas por não quererem trocar experiências de vida comigo.

Se um dia a morte deixasse de nos tocar seria bom? Ou toda a humanidade entraria em depressão profunda por não poder mais morrer? A indústria farmacêutica iria lucrar ainda mais com isso; psicolocos, psicanalistas e psiquiatras também, mas os manicômios viveriam lotados – mais cheios que nossas cadeias.

Preocupo-me mais em conseguir por um título descente em uma poesia do que com regras gramáticas “A língua é viva”, dizem os linguistas a plenos pulmões e alguns gramáticos de forma balbuciante.

O que me resta é torcer para que meus versos possam ir além-mar, além-mudo – meu mundo – e que possam sair de minha casinha e encontrar; e tocar almas humana; e tocar os que desaprenderam a chora, como eu desaprendi depois de descobrir que quem amamos também se vão – da mesma forma como os que odiamos. 

O que me resta é torcer para que me achem agora que já joguei as sementes nesses campos e que sejam polinizados em todos os cantos, rochosos ou não, pois já vi flores nascerem no asfalto duro das grandes cidades e sensibilizar os corações mais rígidos.    

O que me resta é torcer para que minha poesia crie raízes fortes e que toque de forma sutil todos os que ela um dia sentir.


Marcos Martins.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

DOBRAS APRAZÍVEIS



DOBRAS APRAZÍVEIS


Por trás das pálpebras de Alexandrina vi um mundo maravilhoso, com um lindo sol a brilhar;

Por trás das pálpebras de Alexandrina senti toda a emoção em descobrir o mundo novo.

Não tive medo dos corretores de imóveis que ficavam à espreita, para iniciarem suas especulações imobiliária. Só queria curtir o momento assaz aprazível. 

Por trás das pálpebras de Alexandrina vi sonhos nascerem e não vi morte – todos os cemitérios estavam inabitáveis por lá, e os coveiros depressivos por não puderem usar suas habilidades funerárias.

Por trás das pálpebras de Alexandrina tudo faz sentido, todas as cores são vivas e as sopas de letrinhas formam frases poeticamente lindas.

Saí de trás das pálpebras de Alexandrina e não gostei do que vi. Não gostei do que senti. Não gostei da vida devoradora de vidas que presenciei - mastigadora de homens que devoram homens, num movimento antropofágico viciante e cíclico.

Saí dos olhos de Alexandrina e não sei mais como voltar, nem como terminar essa poesia assaz aprazível, devoradora de vidas de homens, maquiavélica e conflitante, como todo ser provido de consciência, que um dia habitou o melhor lugar da terra – as pálpebras de Alexandrina  pôde ter guarida. 


Marcos Martins.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

DOCES DE CARAMELO


DOCES DE CARAMELO

Todos os poetas que li mandei fuzilar na velha baixada de meu coração  
Meu Eu lírico me deixou perdido na Central do Brasil e não quero mais voltar para meu corpo prisão 
Agora quero dizer que não sei o que escrever porque não sou mais poeta
sou poema e poema tem que ser poesia, então sou vazio e sem sentido 
Quero, não quero, não sei se sei o que quero, mas quero o todo
Quero matar o homem que matou o mundo 
Quero o mundo sem homens
Quero, não quero, não sei quem eu quero ser 
Quero, não quero. Aperto o botão e boom! Game Over, e a vida segue com novas comidas pré-cozidas para me proporcionar câncer.
Se achas que esses versos não fazem sentido, tira os olhos do fundo do teu umbigo e senti o mundo que estais existindo...

Marcos Martins.

sábado, 29 de agosto de 2015

Mais um trecho de meu livro: "Relatos de uma Vida ausente - O que não confesso nem ao anjos", onde conto a história de Carlos, um cara acomodado com sua vida que a tem mudada de forma radial apos a morte de sua mãe, uma quase estranha para ele, mesmo dividindo o mesmo teto com ela a mais de 30 anos. Hoje da página 11 até a 15. (caso queiram ler as 10 primeiras é só vistar meu perfil, que postei a uma semana mais ou menos.



(...)
Finalmente chega ao outro lado da pista, consegue cruzar o caminho dos donos das estradas são e salvo e toca a calçada com cheiro de urina, porém segura. Para se vingar de todos esses anos de coação, num ato impensado e inesperado, ergue a mão esquerda, de costas para os carros e de frente para uma loja de CD’s que estava fechada, pode ver sua imagem refletida na vitrine da loja, e os carros em suas costas, ele se pergunta: “Quem ainda compra CD’s?” Não importa. E de costas para a pista, para os carros, para seus problemas, com o braço erguido o mais alto que pode, estica o dedo anelar: “Eu os saúdo, filhos de uma puta!”, diz em voz alta, quase gritando e consegue perceber a reação de ódio dos motoristas, consegue ver seus semblantes distorcidos pelo reflexo da vitrine da loja. Senti em suas costas, em forma de calafrio, à vontade por parte deles de passarem com seus carros por cima de seus ossos. Abaixa o braço, sorri, e segue sem olhar para trás, com a sensação de dever cumprido. O ronco dos motores não o incomoda mais.

***

Carlos tinha 35 anos e um emprego medíocre em uma papelaria chamada Paulina, de mesmo nome da filha do dono, o senhor Francisco, um homem que ao sair do emprego investiu todas as economias na realização de seu sonho, mas que não tinha muito tino para os negócios. Na verdade não tinha tino algum.

Carlos sempre tinha que explicar do que se tratava seu ramo, pois sempre achavam, pelo fato dele trabalhar em uma papelaria, que lidava com coisas de gráfica, então, pacientemente, explicava que seu emprego não tinha nada haver com gráfica e sim com a venda de artigos para escritório, informática e até produtos de limpeza. E assim ele seguia seu dia trabalhando como uma espécie de lã de aço de mil e duas utilidades. Era encarregado das contas a pagar, de dar entrada em mercadorias e quando a coisa apertava saia para fazer entregas. Era a parte que ele mais adorava, pois podia sair da rotina enclausurante da papelaria e se sentir a materialização da utilidade. Sempre que tinha que fazer uma entrega se sentia bem, como se estivesse fazendo um bem à humanidade, mas sempre que voltava, havia uma pilha de coisas para fazer de suas atribuições, porque ninguém, nunca, o ajudava. Ele sempre ajudava a todos.   

O Senhor Francisco era um homem singular, não por sua genialidade e sim por sua falta de expressividade. Era um homem de estatura média e Q.I um pouco menor. Alguns funcionários diziam que ele era simplesmente o cara que assinava os cheques e enxergava os vendedores como se fossem cifrões, nada mais.

Carlos já trabalhava na papelaria a mais de dez anos, porém, tinha apenas três anos de carteira assinada. Sua vida não era fácil no trabalho, mas a de quem é quando se trabalha simplesmente para se pagar as contas. O trabalho foi inventado como forma de castigar os sonhadores, os artistas e boêmios que sabem apreciar boa cerveja e a companhia de prostitutas que sabem sorrir e não cobrar nada por isso. Carlos entendia de prostituas, não entendia de cerveja, mas de prostitutas sim, foram elas que lhe ensinaram tudo depois que seu pai se foi. É. Carlos teve um pai que foi embora, mas ele não sentia a falta de seu velho, pois sempre foi ausente, mesmo quando estava lá, na sala, assistindo a programas dominicais que exploram a desgraça alheia e mostram bailarinas sensuais em roupas que ficariam curtas em meninas de seis anos.

Inconscientemente ele adotara o Senhor Francisco como um pai, era por isso que aguentava tanta injustiça vinda do patrão. Além de ser um faz tudo na papelaria, ainda tinha que limpá-la aos sábados. Todos os funcionários folgavam nesse dia, menos Carlos que ia para o trabalho limpar os produtos de escritório, informática e limpeza. E isso era o mais irônico de tudo, ter que limpar produtos de limpeza, ter que limpar garrafas de detergente e de sabão em pó. Os clientes não aceitavam receber mercadorias empoeiradas e o Senhor Francisco achava que se o produto fosse coberto de poeira, seria desvalorizado. O pior de tudo era que a papelaria ficava em uma avenida movimentada, onde carros, ônibus e até veículos de tração animal não paravam de circular, então era impossível não acumular poeira ao longo da semana. E o trabalho se tornava duro, sujo, cansativo.

***

O sol já despontava menos tímido. Pessoas começavam a circular com mais frequência e frenéticas passavam umas pelas outras sem darem bom dia, sem se olharem nos olhos. Quem se importa com estranhos que não estão nos programas dominicais? Carlos segue para a próxima parada de ônibus “Ser pobre é uma merda”, pensa. Ao chegar à parada, vê algumas crianças cheirando cola – o cartão postal que todo político gostaria de por em baixo do tapete persa –, ele fica entretido com a felicidade entorpecente dos garotos de rua, sente uma ponta de inveja, não sabe o porquê, mas se sente com inveja dessa liberdade, por mais faminta e entorpecida que possa ser. Eles podem voar e Carlos preso ao chão, preso a sua vida insípida. 

Por sorte o ônibus chega logo, ele sobe. Vagueia com os olhos. Não há lugar para sentar. Vai em pé toda a viagem, mas não acha ruim, dessa forma pode apreciar a vista, as formas, o concreto, o asfalto cheio de emendas mal feitas, os não lugares e pessoas que passam, passam e passam sempre apresadas; quanto a ele, não há pressa, a menos que sua mãe comece a cheirar mal, mas ela está bem guardada, levará algum tempo até quererem enterrá-la como indigente ou a exalar algum odor. A vontade de estar se dirigindo para outro lugar o toma e um calafrio aponta do meio de suas costas “Não consigo imaginar como ela está”, diz para si. Não consegue chorar. Talvez seja o ônibus cheio, talvez seja a poluição ou um vírus que os países europeus tenham lançado na América Latina, quem vai saber dessas coisas. O que sabe é que gostaria de estar sonhando, mas sonhar tem sido cada vez menos permitido. 

O ônibus corta a cidade, pessoas sobem, descem, voltam a subir em outros coletivos – nossas vidas passam – e por vezes os motoristas queimam as paradas, então você é privado de descer, de subir, de viver, mas nunca de morrer. Felizes são os que morrem velhos, já lhe disseram várias vezes, mas Carlos não via vantagens em envelhecer. Os velhos só são respeitados por financeiras e essas não têm coração. Envelhecer foi o castigo de Deus para com a maldade humana, era nisso que Carlos acreditava, mas mesmo com esses pensamentos conflitantes ele amava a mãe, não a tratava mal, ele amava sua coroa, como a chamava carinhosamente em segredo, apesar de todo o distanciamento. 

O câncer em sua mãe não havia devorado apenas seus órgãos, também devorava Carlos, e Carlos que sonhava em ser vegetariano sabia que, assim como a progressão do câncer, não poderia voltar e concertar os copos quebrados. A verdade era que sua mãe havia morrido e seu único filho tinha desaprendido a chorar em alguma parte de sua existência.

Finalmente um lugar surge no ônibus, Carlos anda até a cadeira que parecia lhe sorrir, mas logo descobre que não, ela não estava rindo para ele e se dele, pois logo atrás havia uma mulher grávida, com olhos de cobiça. Ele nem bem se senta logo se levanta e cede o lugar para grávida, que é bom ressaltar, nem o agradece.

“Obrigado, otário”, pensou enquanto olhava a grávida que virou o rosto para o lado sem se importar com quem havia lhe proporcionado uma viajem menos dura. A cordialidade havia se tornado um artigo de luxo e os humanos aprendiam cada vez mais a se isolarem dentro de seus mundos particulares. 

Sua parada estava chegando – seu destino –, ironicamente a mesma parada onde havia vomitado quando criança, em um dia de domingo de sol. Ele não estava preparado para presenciar o fim da chama. Mas quem está? Você?

“Vai descer!”, gritou porque o motorista, por estar conversando com uma mulher que ria de qualquer coisa que ele lhe falava, não tinha notado que Carlos havia pedido parada.

Da parada onde descera até o hospital eram cerca de dez minutos de caminhada, mas naquela manhã foram vinte e um. Carlos seguia de cabeça baixa, ombros curvados e o maior vazio na alma. O sol o olhava e quase sentia pena daquela figura diminuta que seguia em linha reta ao encontro de sua verdade. Parou em frente ao hospital. Fica olhando, não com um olhar de contemplação, pelo contrário, reluta em entrar, mas não há como fugir, não depois de ter vivido tanto tempo com aquela mulher, não seria certo.

“O que a senhora está me fazendo fazer, mãe”, se questiona. “Vamos lá Carlos, segue rapaz”, fala para si, tentando criar coragem.

Por um instante suas pernas enrijecem. Não queriam estar ali. Todo o corpo não queria, mas a cabeça comanda o corpo e a ordem é dada: “Ande! Siga! Vá ver sua coroa morta, seu merda”. Seu corpo continua parado enfrente ao hospital, não quer obedecer ao comando. Sentiu o cheiro dos remédios, do formol e da morte, nada mais comum, mas naquele dia o cheiro lhe incomodava, pois sabia que o cheiro da mãe também estava ali, entranhado nas paredes, corredores, cadeiras quebradas, macas, nas batas dos médicos e até no banheiro. Isso daria um bom livro, pensou, mas quem ainda lê livros hoje em dia, se questionou. Você?
(...)

sábado, 22 de agosto de 2015

Como não estou com muita disposição para correr atrás de editoras, para tentar lançar meu livro por uma delas, vou postar aqui alguns trecho de meu livro "Relatos de uma Vida ausente - O que não confesso nem ao anjos", onde conto a história de Carlos, um cara acomodado com sua vida que a tem mudada de forma radial apos a morte de sua mãe, uma quase estranha para ele, mesmo dividindo o mesmo teto com ela a mais de 30 anos.



Da página 01 até a página 10.

"Esse é para a senhora, dona Dora." 


O som renitente do telefone rasga, dilacera o silêncio da noite. Carlos acorda perdido em trevas, suas mãos tateiam, como que tentando estrangular o som que tirara seu sono – um sono revigorante, depois de meses de noites e dias aflitivos.

 “Maldição! Onde está essa porcaria?”, fala procurando o telefone antes mesmo de acordar os olhos.

Ele sempre se questionava por que não podia ter uma extensão telefônica em seu quarto, ou na cozinha, ou no banheiro, ou em qualquer lugar daquela maldita casa que não fosse apenas à sala. Carlos levanta-se e depois de conseguir se equilibrar toca com os dedos sonolentos o interruptor. E se faz luz em seu mundo. Mesmo com os olhos fechados, ele podia sentir o calor que a luz emana em suas pálpebras e a vibração das ondas sonoras do telefone que gritava como uma pessoa desesperada para sair de uma situação indesejada.

Carlos vai seguindo para a sala, coça a cabeça, passa as mãos nos olhos, torcendo os punhos cerrados de um lado para o outro, de um lado para o outro, nos olhos que teimam não quererem permanecer abertos. Eles sabiam que teriam que seguir o mesmo corredor, com paredes descascadas, que as pernas sabiam de có percorrer sem ajuda alguma.

Carlos finalmente chega ao móvel, velho, onde repousava um telefone branco, encardido de tão antigo. Joga uma lista telefônica, que repousava no móvel, no chão, e senta-se, pois o lugar onde estava o telefone tem uma espécie de cadeira acoplada, que permite que quem vá fazer ou receber uma ligação fique sentado e dessa forma possa utilizar o aparelho com um modesto conforto.

“Alô, quem é?”
“Sr. Carlos?”
“Sim, quem é?”
“Sr. Carlos, aqui é do Hospital Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Precisamos que o senhor venha para cá.”
“Que horas são?”
“São 03h20 da madrugada.”
“Como você me liga a essa hora? Você não tem mais o que fazer?”
“Sr. Carlos, é sobre a sua mãe.”
“O que tem minha mãe?”
“Ela se foi.”
“O quê? Ela foi embora do hospital!?”
“Não Sr., ela faleceu.” 
“Puta merda!”

A mulher que lhe dera a notícia, provavelmente uma assistente social – não importa –, continuava falando, falando e falando, explicava toda a situação e os procedimentos que Carlos teria que tomar dali para frente, mas ele não conseguia ouvir nada, não conseguia sentir-se dentro do corpo. A boca ficou dormente, o coração acelerou, parecia querer saltar do peito e fugir para bem longe de toda aquela situação que todo o corpo precisava enfrentar. 

A ligação terminou e o silêncio desconfortável preencheu o ambiente, da mesma forma que naftalina quando deixada dentro de uma gaveta fechada por muito tempo, que ao ser aberta adentra as narinas queimando tudo em seu interior.  

Carlos colocou o telefone no gancho e ficou olhando para o nada, como se procurasse algo, algo que desconhecia a forma, a cor, textura e se fosse comestível nunca havia sentido o sabor. “Preciso dar uma mijada”, pensou. Levantou-se, andou meio cambaleante até ao banheiro. Chegou ao sanitário. Não conseguia acender a luz. Não conseguia achar o interruptor, o mesmo interruptor que estava ali a mais de 30 anos. Resolveu urinar no escuro mesmo. Sentou-se no vaso para não correr o risco de urinar todo o chão do banheiro, e enquanto urinava e ouvia o som da urina se chocar contra a água do vaso, sentiu-se o último ser da terra, um bicho em extinção, um caranguejo ermitão sem sua casa nas costas. 

“Onde se meteu esse interruptor?”, pensou em voz alta enquanto sentia a satisfação de secar a bexiga e o medo de secar por inteiro. 

Terminou de urinar, subiu o calção. Não lavou as mãos. Seguiu para o quarto. Deitou na cama – uma cama de casal para uma só pessoa dormir. Quanta solidão. Fechou os olhos com força, pensou estar sonhando, mas não estava sonhando. Não estava dormindo. Não estava sonhando.

Tornou a levantar e foi procurar uma roupa para ir ao hospital. Passou meia hora procurando e acabou escolhendo a mesma roupa que havia ido um dia antes passar o dia com a mãe: Um tênis preto, cano curto, uma calça jeans, já desbotada, e uma camisa polo azul – ele adorava a cor azul, no entanto, não gostava do mar, que todos dizem ser azul, mas Carlos só achava-o profundo, obscuro e inconfiável.

Vestiu-se, colocou a carteira no bolso da frente da calça – era uma carteira pequena, do tipo que serve para guardar cartões de créditos que nunca tivera. Pegou papel higiênico, pôs no bolso de trás da calça. Ele sempre andava com papel higiênico, dizia que era uma forma de não depender cem por cento de banheiros públicos. Pegou as chaves de casa e saiu no final da noite. Ainda era noite. Ainda estava escuro e não havia um pé de pessoa na rua. 

Olhou para os dois lados da rua, antes de sair totalmente de casa, não sentiu medo de enfrentar a madrugada, não tinha tempo para essas coisas. Como morava perto do terminal de ônibus, seguiu para lá na esperança de ter, ao menos, um ônibus esperando dar sua hora de sair e assim saírem juntos na cumplicidade da noite, sem terem que dar satisfação a ninguém.

Chegou ao terminal de ônibus e lembrou que não havia escovado os dentes. Não tinha importância. Nada mais tinha importância na verdade. Nada teve tanta importância assim quando ela estava viva. E agora ele estava perdido, pois finalmente iria sair da casca e isso o amedrontou mais do que contemplar o corpo da mãe sem vida numa cama de hospital público.

***

Nada de ônibus. Nada de motorista. Nada de nada, apenas noite, apenas o silêncio do nada para ser contemplado. Uma brisa fria tocou-lhe o rosto, o fez fechar os olhos por uns minutos, mas ele sabia que se os fechassem por muito tempo poderia reencontrar o sono que o espreitava sorrateiramente e dormir ao relento não estava em seus planos.

Carlos se espreguiçou, bocejou, e voltou a esperar o ônibus. Até aquele momento a ficha não havia caído por completo. Era como se fosse visitar a mãe no hospital e presenciar o sofrimento da matriarca que lutava contra um câncer a tempo de mais.

O sol ia nascendo timidamente e algumas pessoas já começavam a aparecer para tomarem seu transporte, para mais um dia na labuta. Carlos se lembrou de ligar para o patrão, tinha que avisar que não iria trabalhar. Mas era muito cedo para se ligar para alguém e dar notícias fúnebres, mesmo se fosse para um parente – apesar de Carlos não ter mais parentes vivos, era só ele e a mãe e agora apenas ele e mais ninguém para compartilhar as macarronadas frias nos fins de semana.

 Finalmente um ônibus chega e apesar de toda a demora na espera do coletivo e ter sido o primeiro a chegar ao terminal, Carlos acaba sendo a quarta pessoa a entrar na condução. Ninguém respeita filas hoje em dia.

O motorista desce do coletivo, com um copo de café na mão, para esticar as pernas antes de dar sua hora de sair. A fumaça do café denuncia que o mesmo estava quente e o aroma que exalava dava o tom do quão delicioso parecia estar, era um aroma nostálgico, uma lembrança boa de um abraço protetor. O estômago de Carlos acorda e lhe diz que está com fome, ele passa a mão na barriga, como que tentando acalmá-la. Dá resultado. O estomago se cala por um tempo e volta a adormecer.

“Bom dia”, fala o motorista com um sorriso simpático.

 Algumas pessoas respondem com os olhos, outras, mais íntimas do motorista, com a boca, mas Carlos não esboça nenhuma reação, parece perdido nos braços de Morfeu, como se estivesse vivendo um sonho acordado, porém com a certeza de estar acordado, mesmo se sentido deslocado da realidade.  

“Bom dia”, disse o cobrador enquanto Carlos pagava a passagem.

Carlos acena com a cabeça de forma inexpressiva e roda a catraca, vai para a última cadeira na parte de trás do ônibus, escolhe o lado direito, senta-se e espera por sua longa viagem. Mais pessoas começam a subir, não chega a lotar o ônibus, no entanto, acaba ficando apenas três cadeiras vazias. Algumas pessoas sentavam-se em pares, outras sozinhas e outras em pares, porém se sentindo sozinhas.

Carlos tira um aparelho de MP3 do bolso, põe os fones de ouvido e começa a escutar as músicas que havia selecionado há algum tempo. Só que na verdade não queria ouvir música, fez aquilo porque uma pessoa ameaçava sentar-se ao seu lado e ele não estava para conversas, nem para dar mais “Bom dia” a ninguém.

O motorista finalmente entra no ônibus, senta-se em sua cadeira, gira a chave. O veiculo liga de primeira – o ronco do motor dá o aviso que está tudo pronto para seguirem. Carlos sente que não está pronto. Duas aceleradas; primeira marcha engatada, portas fechadas, é hora de ir.  

Si tem uma coisa que tomar coletivos no mesmo horário todos os dias proporciona é a sensação de posse. Um senhor sobe na primeira parada, logo após terem saído do terminal, e assim que passa pela catraca, olha para o lugar onde Carlos está sentado. O homem sentava-se ali há muito tempo e Carlos mudara a rotina daquela pessoa, que logo o olhou da mesma forma como se olham pessoas recém-chegadas a uma cidade do interior. Todos sabem que ela não pertence aquele lugar e a olham, despudoradamente, com desconfiança. Carlos encolhe os ombros, cruza os braços e vira o rosto para o lado de fora da janela, que estava entreaberta, deixando passar apenas o necessário de vento frio para deixá-lo acordado, pois não queria correr o risco de passar da parada que iria descer, e o vento frio o deixava alerta.

O senhor continuava a olhar para Carlos, parecia não entender aquela nova realidade. O observador era um homem de meia idade, cabelos ralos e grisalhos, penteados para o lado direito – uma forma de camuflar sua calvície, mas não adiantava muito, pois a parte de trás de sua cabeça ficava com a careca à mostra.

“Posso jurar que esse cara quer me estrangular”, pensou e adiantou uma música. 

Ele poderia estar certo, pois nem todos estão preparados para saírem de suas rotinas viciantes e Carlos acabara de mudar a rotina de todos naquele ônibus, como se o bater de asas de uma borboleta, do outro lado do mundo, estivesse causando estragos irreversíveis em suas vidas. Carlos era a borboleta e em sua cabeça não só o senhor de meia idade, mas todos naquele ônibus, o queriam fora dali, pois ele era um corpo estranho e todas, ou quase todas, as pessoas temem o novo. O desconhecido às vezes desconforta os menos preparados.

O frio começava a incomodar Carlos, que parou de se preocupar com o senhor de cabelos ralos penteados para o lado e sua calvície semicamuflada. O senhor acabou sentando-se do lado de uma mulher, que pela roupa, deveria ser enfermeira. Quem sabe eles não se conhecessem e acabassem se apaixonando, pois a mulher não aparentava ser muito mais nova do que ele e como Carlos interferira na vida de todos no coletivo, quem sabe uma coisa boa surgisse. Na verdade, Carlos não queria saber de nada daquilo, ele só quis fechar a janela um pouco mais e dessa forma aquecesse.

***

Para chegar ao Hospital Nossa Senhora do Perpétuo Socorro seria preciso pegar mais um ônibus, o hospital era longe da casa de Carlos e a rotina de ter que ficar com a mãe quase toda à noite estava deixando-o exausto, ele já havia perdido 5 quilos desde a internação da mãe, não dormia direito, passou a tomar remédios para poder dormir “cápsulas de felicidade”, era como costumava chamar os comprimidos de rivotril que passou a tomar sem prescrição médica, graças a um amigo que o pai era dono de uma farmácia e lhe vendia o remédio sem burocracia alguma.

Finalmente sua parada estava chegando e só não sentiu ansiedade para descer do ônibus por restar um pouco do efeito do remédio em seu sangue. Carlos tinha ansiedade, começou a desenvolvê-la quando a mãe internou-se, e sempre que o telefone tocava ele pensava ser o aviso de que sua mãe tinha piorado ou morrido, por isso, passou a tomar os remédios quando estava em casa e a dormir com mais frequência no hospital, pois o toque do telefone o estava deixando paranoico.

O Hospital Nossa Senhora do Perpétuo Socorro era público e como todo hospital público sem regalias, mas mesmo assim ele conseguia arrumar um meio de dormir vez por outra no hospital. Ia para um banco ou ficava do lado de fora conversando com os motoristas das ambulâncias e os maqueiros. Chegou até a ajudar certa vez quando um acidente com um ônibus cheio de romeiros se chocou com um caminhão e muitas pessoas foram levadas para o hospital. Foi uma noite agitada.

Carlos não precisou pedir parada, pois o senhor de meia idade e cabelos ralos iria descer na mesma parada que ele; a enfermeira continuou no mesmo lugar, logo, Carlos não interferiu no destino dos dois, apenas sentou-se num lugar que era habitado por um senhor que tentava esconder sua crescente queda de cabelos.

Meio que para se redimir, deixou que o senhor descesse primeiro. Na verdade foi mais medo de ser pego de surpresa com um mata leão pelas costas. 

Carlos foi andando pela cidade, ainda sonolenta, para pegar seu próximo ônibus. A parada era enfrente a um cinema, o último que ficava na cidade, já que todos os cinemas estavam em shoppings. Aquele fora o primeiro cinema que Carlos entrou quando menino, ele não lembrava qual filme tinha assistido, mas lembrava da escuridão que o aterrorizou e da mão quente de sua mãe a tocar sua mão para que se sentisse seguro. Olhou para o letreiro, viu que filme estava passando e voltou a andar.

Para tomar o próximo ônibus tinha que atravessar uma pista de mão dupla, parou para esperar o sinal abrir para os pedestres e enquanto esperava soube, no fundo daquilo que chamavam de alma, mesmo sem ter certeza de que tinha uma, que Deus nunca o desejou pisando na terra, que seu nascimento foi um erro humano e então, seus olhos negros tentaram fazer brotar lágrimas em sua íris, tentaram lhe impor pena, mas ele não precisava de alto-piedade, nem da piedade de ninguém, porque sabia que estava por conta própria e que continuaria a se arriscar por entre os semáforos fechados para pedestres e aberto para os carros que voavam, distorcendo suas formas pela velocidade, e em um suspiro longo e alto desejou que sua vida não passasse de uma piada suja, contada por um velho bêbado depravado em um bar cheio de putas. Mas a vida tinha lhe reservado mais surpresas desagradáveis e mais confissões que um Padre pudesse suportar e manter-se dentro de sua sanidade sacerdotal, mental, humana.

O sinal finalmente abrira para os pedestres e os carros, até então desfocados, foram parando, tomando forma e dando forma a seus donos, que esperavam, esperavam, esperavam impacientes, querendo que o trânsito voltasse a funcionar – da mesma forma que o sangue precisa circular pelas artérias. Carlos seguiu em linha reta até o outro lado da pista, os carros eram acelerados como se desejassem passar por cima dele. Ele odiava quando os carros eram acelerados enquanto os sinais estavam abertos para os pedestres. Carlos achava aquilo uma forma de intimidação, de mostrar a superioridade idiota que quase todos têm dentro de seus automóveis. Ele continuava a seguir em linha reta, cabeça baixa, mas se roendo por dentro. O som dos motores. As pisadas no acelerador. Isso o incomodava muito, sempre incomodou, desde antes os pelos pubianos.