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sábado, 29 de agosto de 2015

Mais um trecho de meu livro: "Relatos de uma Vida ausente - O que não confesso nem ao anjos", onde conto a história de Carlos, um cara acomodado com sua vida que a tem mudada de forma radial apos a morte de sua mãe, uma quase estranha para ele, mesmo dividindo o mesmo teto com ela a mais de 30 anos. Hoje da página 11 até a 15. (caso queiram ler as 10 primeiras é só vistar meu perfil, que postei a uma semana mais ou menos.



(...)
Finalmente chega ao outro lado da pista, consegue cruzar o caminho dos donos das estradas são e salvo e toca a calçada com cheiro de urina, porém segura. Para se vingar de todos esses anos de coação, num ato impensado e inesperado, ergue a mão esquerda, de costas para os carros e de frente para uma loja de CD’s que estava fechada, pode ver sua imagem refletida na vitrine da loja, e os carros em suas costas, ele se pergunta: “Quem ainda compra CD’s?” Não importa. E de costas para a pista, para os carros, para seus problemas, com o braço erguido o mais alto que pode, estica o dedo anelar: “Eu os saúdo, filhos de uma puta!”, diz em voz alta, quase gritando e consegue perceber a reação de ódio dos motoristas, consegue ver seus semblantes distorcidos pelo reflexo da vitrine da loja. Senti em suas costas, em forma de calafrio, à vontade por parte deles de passarem com seus carros por cima de seus ossos. Abaixa o braço, sorri, e segue sem olhar para trás, com a sensação de dever cumprido. O ronco dos motores não o incomoda mais.

***

Carlos tinha 35 anos e um emprego medíocre em uma papelaria chamada Paulina, de mesmo nome da filha do dono, o senhor Francisco, um homem que ao sair do emprego investiu todas as economias na realização de seu sonho, mas que não tinha muito tino para os negócios. Na verdade não tinha tino algum.

Carlos sempre tinha que explicar do que se tratava seu ramo, pois sempre achavam, pelo fato dele trabalhar em uma papelaria, que lidava com coisas de gráfica, então, pacientemente, explicava que seu emprego não tinha nada haver com gráfica e sim com a venda de artigos para escritório, informática e até produtos de limpeza. E assim ele seguia seu dia trabalhando como uma espécie de lã de aço de mil e duas utilidades. Era encarregado das contas a pagar, de dar entrada em mercadorias e quando a coisa apertava saia para fazer entregas. Era a parte que ele mais adorava, pois podia sair da rotina enclausurante da papelaria e se sentir a materialização da utilidade. Sempre que tinha que fazer uma entrega se sentia bem, como se estivesse fazendo um bem à humanidade, mas sempre que voltava, havia uma pilha de coisas para fazer de suas atribuições, porque ninguém, nunca, o ajudava. Ele sempre ajudava a todos.   

O Senhor Francisco era um homem singular, não por sua genialidade e sim por sua falta de expressividade. Era um homem de estatura média e Q.I um pouco menor. Alguns funcionários diziam que ele era simplesmente o cara que assinava os cheques e enxergava os vendedores como se fossem cifrões, nada mais.

Carlos já trabalhava na papelaria a mais de dez anos, porém, tinha apenas três anos de carteira assinada. Sua vida não era fácil no trabalho, mas a de quem é quando se trabalha simplesmente para se pagar as contas. O trabalho foi inventado como forma de castigar os sonhadores, os artistas e boêmios que sabem apreciar boa cerveja e a companhia de prostitutas que sabem sorrir e não cobrar nada por isso. Carlos entendia de prostituas, não entendia de cerveja, mas de prostitutas sim, foram elas que lhe ensinaram tudo depois que seu pai se foi. É. Carlos teve um pai que foi embora, mas ele não sentia a falta de seu velho, pois sempre foi ausente, mesmo quando estava lá, na sala, assistindo a programas dominicais que exploram a desgraça alheia e mostram bailarinas sensuais em roupas que ficariam curtas em meninas de seis anos.

Inconscientemente ele adotara o Senhor Francisco como um pai, era por isso que aguentava tanta injustiça vinda do patrão. Além de ser um faz tudo na papelaria, ainda tinha que limpá-la aos sábados. Todos os funcionários folgavam nesse dia, menos Carlos que ia para o trabalho limpar os produtos de escritório, informática e limpeza. E isso era o mais irônico de tudo, ter que limpar produtos de limpeza, ter que limpar garrafas de detergente e de sabão em pó. Os clientes não aceitavam receber mercadorias empoeiradas e o Senhor Francisco achava que se o produto fosse coberto de poeira, seria desvalorizado. O pior de tudo era que a papelaria ficava em uma avenida movimentada, onde carros, ônibus e até veículos de tração animal não paravam de circular, então era impossível não acumular poeira ao longo da semana. E o trabalho se tornava duro, sujo, cansativo.

***

O sol já despontava menos tímido. Pessoas começavam a circular com mais frequência e frenéticas passavam umas pelas outras sem darem bom dia, sem se olharem nos olhos. Quem se importa com estranhos que não estão nos programas dominicais? Carlos segue para a próxima parada de ônibus “Ser pobre é uma merda”, pensa. Ao chegar à parada, vê algumas crianças cheirando cola – o cartão postal que todo político gostaria de por em baixo do tapete persa –, ele fica entretido com a felicidade entorpecente dos garotos de rua, sente uma ponta de inveja, não sabe o porquê, mas se sente com inveja dessa liberdade, por mais faminta e entorpecida que possa ser. Eles podem voar e Carlos preso ao chão, preso a sua vida insípida. 

Por sorte o ônibus chega logo, ele sobe. Vagueia com os olhos. Não há lugar para sentar. Vai em pé toda a viagem, mas não acha ruim, dessa forma pode apreciar a vista, as formas, o concreto, o asfalto cheio de emendas mal feitas, os não lugares e pessoas que passam, passam e passam sempre apresadas; quanto a ele, não há pressa, a menos que sua mãe comece a cheirar mal, mas ela está bem guardada, levará algum tempo até quererem enterrá-la como indigente ou a exalar algum odor. A vontade de estar se dirigindo para outro lugar o toma e um calafrio aponta do meio de suas costas “Não consigo imaginar como ela está”, diz para si. Não consegue chorar. Talvez seja o ônibus cheio, talvez seja a poluição ou um vírus que os países europeus tenham lançado na América Latina, quem vai saber dessas coisas. O que sabe é que gostaria de estar sonhando, mas sonhar tem sido cada vez menos permitido. 

O ônibus corta a cidade, pessoas sobem, descem, voltam a subir em outros coletivos – nossas vidas passam – e por vezes os motoristas queimam as paradas, então você é privado de descer, de subir, de viver, mas nunca de morrer. Felizes são os que morrem velhos, já lhe disseram várias vezes, mas Carlos não via vantagens em envelhecer. Os velhos só são respeitados por financeiras e essas não têm coração. Envelhecer foi o castigo de Deus para com a maldade humana, era nisso que Carlos acreditava, mas mesmo com esses pensamentos conflitantes ele amava a mãe, não a tratava mal, ele amava sua coroa, como a chamava carinhosamente em segredo, apesar de todo o distanciamento. 

O câncer em sua mãe não havia devorado apenas seus órgãos, também devorava Carlos, e Carlos que sonhava em ser vegetariano sabia que, assim como a progressão do câncer, não poderia voltar e concertar os copos quebrados. A verdade era que sua mãe havia morrido e seu único filho tinha desaprendido a chorar em alguma parte de sua existência.

Finalmente um lugar surge no ônibus, Carlos anda até a cadeira que parecia lhe sorrir, mas logo descobre que não, ela não estava rindo para ele e se dele, pois logo atrás havia uma mulher grávida, com olhos de cobiça. Ele nem bem se senta logo se levanta e cede o lugar para grávida, que é bom ressaltar, nem o agradece.

“Obrigado, otário”, pensou enquanto olhava a grávida que virou o rosto para o lado sem se importar com quem havia lhe proporcionado uma viajem menos dura. A cordialidade havia se tornado um artigo de luxo e os humanos aprendiam cada vez mais a se isolarem dentro de seus mundos particulares. 

Sua parada estava chegando – seu destino –, ironicamente a mesma parada onde havia vomitado quando criança, em um dia de domingo de sol. Ele não estava preparado para presenciar o fim da chama. Mas quem está? Você?

“Vai descer!”, gritou porque o motorista, por estar conversando com uma mulher que ria de qualquer coisa que ele lhe falava, não tinha notado que Carlos havia pedido parada.

Da parada onde descera até o hospital eram cerca de dez minutos de caminhada, mas naquela manhã foram vinte e um. Carlos seguia de cabeça baixa, ombros curvados e o maior vazio na alma. O sol o olhava e quase sentia pena daquela figura diminuta que seguia em linha reta ao encontro de sua verdade. Parou em frente ao hospital. Fica olhando, não com um olhar de contemplação, pelo contrário, reluta em entrar, mas não há como fugir, não depois de ter vivido tanto tempo com aquela mulher, não seria certo.

“O que a senhora está me fazendo fazer, mãe”, se questiona. “Vamos lá Carlos, segue rapaz”, fala para si, tentando criar coragem.

Por um instante suas pernas enrijecem. Não queriam estar ali. Todo o corpo não queria, mas a cabeça comanda o corpo e a ordem é dada: “Ande! Siga! Vá ver sua coroa morta, seu merda”. Seu corpo continua parado enfrente ao hospital, não quer obedecer ao comando. Sentiu o cheiro dos remédios, do formol e da morte, nada mais comum, mas naquele dia o cheiro lhe incomodava, pois sabia que o cheiro da mãe também estava ali, entranhado nas paredes, corredores, cadeiras quebradas, macas, nas batas dos médicos e até no banheiro. Isso daria um bom livro, pensou, mas quem ainda lê livros hoje em dia, se questionou. Você?
(...)

sábado, 22 de agosto de 2015

Como não estou com muita disposição para correr atrás de editoras, para tentar lançar meu livro por uma delas, vou postar aqui alguns trecho de meu livro "Relatos de uma Vida ausente - O que não confesso nem ao anjos", onde conto a história de Carlos, um cara acomodado com sua vida que a tem mudada de forma radial apos a morte de sua mãe, uma quase estranha para ele, mesmo dividindo o mesmo teto com ela a mais de 30 anos.



Da página 01 até a página 10.

"Esse é para a senhora, dona Dora." 


O som renitente do telefone rasga, dilacera o silêncio da noite. Carlos acorda perdido em trevas, suas mãos tateiam, como que tentando estrangular o som que tirara seu sono – um sono revigorante, depois de meses de noites e dias aflitivos.

 “Maldição! Onde está essa porcaria?”, fala procurando o telefone antes mesmo de acordar os olhos.

Ele sempre se questionava por que não podia ter uma extensão telefônica em seu quarto, ou na cozinha, ou no banheiro, ou em qualquer lugar daquela maldita casa que não fosse apenas à sala. Carlos levanta-se e depois de conseguir se equilibrar toca com os dedos sonolentos o interruptor. E se faz luz em seu mundo. Mesmo com os olhos fechados, ele podia sentir o calor que a luz emana em suas pálpebras e a vibração das ondas sonoras do telefone que gritava como uma pessoa desesperada para sair de uma situação indesejada.

Carlos vai seguindo para a sala, coça a cabeça, passa as mãos nos olhos, torcendo os punhos cerrados de um lado para o outro, de um lado para o outro, nos olhos que teimam não quererem permanecer abertos. Eles sabiam que teriam que seguir o mesmo corredor, com paredes descascadas, que as pernas sabiam de có percorrer sem ajuda alguma.

Carlos finalmente chega ao móvel, velho, onde repousava um telefone branco, encardido de tão antigo. Joga uma lista telefônica, que repousava no móvel, no chão, e senta-se, pois o lugar onde estava o telefone tem uma espécie de cadeira acoplada, que permite que quem vá fazer ou receber uma ligação fique sentado e dessa forma possa utilizar o aparelho com um modesto conforto.

“Alô, quem é?”
“Sr. Carlos?”
“Sim, quem é?”
“Sr. Carlos, aqui é do Hospital Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Precisamos que o senhor venha para cá.”
“Que horas são?”
“São 03h20 da madrugada.”
“Como você me liga a essa hora? Você não tem mais o que fazer?”
“Sr. Carlos, é sobre a sua mãe.”
“O que tem minha mãe?”
“Ela se foi.”
“O quê? Ela foi embora do hospital!?”
“Não Sr., ela faleceu.” 
“Puta merda!”

A mulher que lhe dera a notícia, provavelmente uma assistente social – não importa –, continuava falando, falando e falando, explicava toda a situação e os procedimentos que Carlos teria que tomar dali para frente, mas ele não conseguia ouvir nada, não conseguia sentir-se dentro do corpo. A boca ficou dormente, o coração acelerou, parecia querer saltar do peito e fugir para bem longe de toda aquela situação que todo o corpo precisava enfrentar. 

A ligação terminou e o silêncio desconfortável preencheu o ambiente, da mesma forma que naftalina quando deixada dentro de uma gaveta fechada por muito tempo, que ao ser aberta adentra as narinas queimando tudo em seu interior.  

Carlos colocou o telefone no gancho e ficou olhando para o nada, como se procurasse algo, algo que desconhecia a forma, a cor, textura e se fosse comestível nunca havia sentido o sabor. “Preciso dar uma mijada”, pensou. Levantou-se, andou meio cambaleante até ao banheiro. Chegou ao sanitário. Não conseguia acender a luz. Não conseguia achar o interruptor, o mesmo interruptor que estava ali a mais de 30 anos. Resolveu urinar no escuro mesmo. Sentou-se no vaso para não correr o risco de urinar todo o chão do banheiro, e enquanto urinava e ouvia o som da urina se chocar contra a água do vaso, sentiu-se o último ser da terra, um bicho em extinção, um caranguejo ermitão sem sua casa nas costas. 

“Onde se meteu esse interruptor?”, pensou em voz alta enquanto sentia a satisfação de secar a bexiga e o medo de secar por inteiro. 

Terminou de urinar, subiu o calção. Não lavou as mãos. Seguiu para o quarto. Deitou na cama – uma cama de casal para uma só pessoa dormir. Quanta solidão. Fechou os olhos com força, pensou estar sonhando, mas não estava sonhando. Não estava dormindo. Não estava sonhando.

Tornou a levantar e foi procurar uma roupa para ir ao hospital. Passou meia hora procurando e acabou escolhendo a mesma roupa que havia ido um dia antes passar o dia com a mãe: Um tênis preto, cano curto, uma calça jeans, já desbotada, e uma camisa polo azul – ele adorava a cor azul, no entanto, não gostava do mar, que todos dizem ser azul, mas Carlos só achava-o profundo, obscuro e inconfiável.

Vestiu-se, colocou a carteira no bolso da frente da calça – era uma carteira pequena, do tipo que serve para guardar cartões de créditos que nunca tivera. Pegou papel higiênico, pôs no bolso de trás da calça. Ele sempre andava com papel higiênico, dizia que era uma forma de não depender cem por cento de banheiros públicos. Pegou as chaves de casa e saiu no final da noite. Ainda era noite. Ainda estava escuro e não havia um pé de pessoa na rua. 

Olhou para os dois lados da rua, antes de sair totalmente de casa, não sentiu medo de enfrentar a madrugada, não tinha tempo para essas coisas. Como morava perto do terminal de ônibus, seguiu para lá na esperança de ter, ao menos, um ônibus esperando dar sua hora de sair e assim saírem juntos na cumplicidade da noite, sem terem que dar satisfação a ninguém.

Chegou ao terminal de ônibus e lembrou que não havia escovado os dentes. Não tinha importância. Nada mais tinha importância na verdade. Nada teve tanta importância assim quando ela estava viva. E agora ele estava perdido, pois finalmente iria sair da casca e isso o amedrontou mais do que contemplar o corpo da mãe sem vida numa cama de hospital público.

***

Nada de ônibus. Nada de motorista. Nada de nada, apenas noite, apenas o silêncio do nada para ser contemplado. Uma brisa fria tocou-lhe o rosto, o fez fechar os olhos por uns minutos, mas ele sabia que se os fechassem por muito tempo poderia reencontrar o sono que o espreitava sorrateiramente e dormir ao relento não estava em seus planos.

Carlos se espreguiçou, bocejou, e voltou a esperar o ônibus. Até aquele momento a ficha não havia caído por completo. Era como se fosse visitar a mãe no hospital e presenciar o sofrimento da matriarca que lutava contra um câncer a tempo de mais.

O sol ia nascendo timidamente e algumas pessoas já começavam a aparecer para tomarem seu transporte, para mais um dia na labuta. Carlos se lembrou de ligar para o patrão, tinha que avisar que não iria trabalhar. Mas era muito cedo para se ligar para alguém e dar notícias fúnebres, mesmo se fosse para um parente – apesar de Carlos não ter mais parentes vivos, era só ele e a mãe e agora apenas ele e mais ninguém para compartilhar as macarronadas frias nos fins de semana.

 Finalmente um ônibus chega e apesar de toda a demora na espera do coletivo e ter sido o primeiro a chegar ao terminal, Carlos acaba sendo a quarta pessoa a entrar na condução. Ninguém respeita filas hoje em dia.

O motorista desce do coletivo, com um copo de café na mão, para esticar as pernas antes de dar sua hora de sair. A fumaça do café denuncia que o mesmo estava quente e o aroma que exalava dava o tom do quão delicioso parecia estar, era um aroma nostálgico, uma lembrança boa de um abraço protetor. O estômago de Carlos acorda e lhe diz que está com fome, ele passa a mão na barriga, como que tentando acalmá-la. Dá resultado. O estomago se cala por um tempo e volta a adormecer.

“Bom dia”, fala o motorista com um sorriso simpático.

 Algumas pessoas respondem com os olhos, outras, mais íntimas do motorista, com a boca, mas Carlos não esboça nenhuma reação, parece perdido nos braços de Morfeu, como se estivesse vivendo um sonho acordado, porém com a certeza de estar acordado, mesmo se sentido deslocado da realidade.  

“Bom dia”, disse o cobrador enquanto Carlos pagava a passagem.

Carlos acena com a cabeça de forma inexpressiva e roda a catraca, vai para a última cadeira na parte de trás do ônibus, escolhe o lado direito, senta-se e espera por sua longa viagem. Mais pessoas começam a subir, não chega a lotar o ônibus, no entanto, acaba ficando apenas três cadeiras vazias. Algumas pessoas sentavam-se em pares, outras sozinhas e outras em pares, porém se sentindo sozinhas.

Carlos tira um aparelho de MP3 do bolso, põe os fones de ouvido e começa a escutar as músicas que havia selecionado há algum tempo. Só que na verdade não queria ouvir música, fez aquilo porque uma pessoa ameaçava sentar-se ao seu lado e ele não estava para conversas, nem para dar mais “Bom dia” a ninguém.

O motorista finalmente entra no ônibus, senta-se em sua cadeira, gira a chave. O veiculo liga de primeira – o ronco do motor dá o aviso que está tudo pronto para seguirem. Carlos sente que não está pronto. Duas aceleradas; primeira marcha engatada, portas fechadas, é hora de ir.  

Si tem uma coisa que tomar coletivos no mesmo horário todos os dias proporciona é a sensação de posse. Um senhor sobe na primeira parada, logo após terem saído do terminal, e assim que passa pela catraca, olha para o lugar onde Carlos está sentado. O homem sentava-se ali há muito tempo e Carlos mudara a rotina daquela pessoa, que logo o olhou da mesma forma como se olham pessoas recém-chegadas a uma cidade do interior. Todos sabem que ela não pertence aquele lugar e a olham, despudoradamente, com desconfiança. Carlos encolhe os ombros, cruza os braços e vira o rosto para o lado de fora da janela, que estava entreaberta, deixando passar apenas o necessário de vento frio para deixá-lo acordado, pois não queria correr o risco de passar da parada que iria descer, e o vento frio o deixava alerta.

O senhor continuava a olhar para Carlos, parecia não entender aquela nova realidade. O observador era um homem de meia idade, cabelos ralos e grisalhos, penteados para o lado direito – uma forma de camuflar sua calvície, mas não adiantava muito, pois a parte de trás de sua cabeça ficava com a careca à mostra.

“Posso jurar que esse cara quer me estrangular”, pensou e adiantou uma música. 

Ele poderia estar certo, pois nem todos estão preparados para saírem de suas rotinas viciantes e Carlos acabara de mudar a rotina de todos naquele ônibus, como se o bater de asas de uma borboleta, do outro lado do mundo, estivesse causando estragos irreversíveis em suas vidas. Carlos era a borboleta e em sua cabeça não só o senhor de meia idade, mas todos naquele ônibus, o queriam fora dali, pois ele era um corpo estranho e todas, ou quase todas, as pessoas temem o novo. O desconhecido às vezes desconforta os menos preparados.

O frio começava a incomodar Carlos, que parou de se preocupar com o senhor de cabelos ralos penteados para o lado e sua calvície semicamuflada. O senhor acabou sentando-se do lado de uma mulher, que pela roupa, deveria ser enfermeira. Quem sabe eles não se conhecessem e acabassem se apaixonando, pois a mulher não aparentava ser muito mais nova do que ele e como Carlos interferira na vida de todos no coletivo, quem sabe uma coisa boa surgisse. Na verdade, Carlos não queria saber de nada daquilo, ele só quis fechar a janela um pouco mais e dessa forma aquecesse.

***

Para chegar ao Hospital Nossa Senhora do Perpétuo Socorro seria preciso pegar mais um ônibus, o hospital era longe da casa de Carlos e a rotina de ter que ficar com a mãe quase toda à noite estava deixando-o exausto, ele já havia perdido 5 quilos desde a internação da mãe, não dormia direito, passou a tomar remédios para poder dormir “cápsulas de felicidade”, era como costumava chamar os comprimidos de rivotril que passou a tomar sem prescrição médica, graças a um amigo que o pai era dono de uma farmácia e lhe vendia o remédio sem burocracia alguma.

Finalmente sua parada estava chegando e só não sentiu ansiedade para descer do ônibus por restar um pouco do efeito do remédio em seu sangue. Carlos tinha ansiedade, começou a desenvolvê-la quando a mãe internou-se, e sempre que o telefone tocava ele pensava ser o aviso de que sua mãe tinha piorado ou morrido, por isso, passou a tomar os remédios quando estava em casa e a dormir com mais frequência no hospital, pois o toque do telefone o estava deixando paranoico.

O Hospital Nossa Senhora do Perpétuo Socorro era público e como todo hospital público sem regalias, mas mesmo assim ele conseguia arrumar um meio de dormir vez por outra no hospital. Ia para um banco ou ficava do lado de fora conversando com os motoristas das ambulâncias e os maqueiros. Chegou até a ajudar certa vez quando um acidente com um ônibus cheio de romeiros se chocou com um caminhão e muitas pessoas foram levadas para o hospital. Foi uma noite agitada.

Carlos não precisou pedir parada, pois o senhor de meia idade e cabelos ralos iria descer na mesma parada que ele; a enfermeira continuou no mesmo lugar, logo, Carlos não interferiu no destino dos dois, apenas sentou-se num lugar que era habitado por um senhor que tentava esconder sua crescente queda de cabelos.

Meio que para se redimir, deixou que o senhor descesse primeiro. Na verdade foi mais medo de ser pego de surpresa com um mata leão pelas costas. 

Carlos foi andando pela cidade, ainda sonolenta, para pegar seu próximo ônibus. A parada era enfrente a um cinema, o último que ficava na cidade, já que todos os cinemas estavam em shoppings. Aquele fora o primeiro cinema que Carlos entrou quando menino, ele não lembrava qual filme tinha assistido, mas lembrava da escuridão que o aterrorizou e da mão quente de sua mãe a tocar sua mão para que se sentisse seguro. Olhou para o letreiro, viu que filme estava passando e voltou a andar.

Para tomar o próximo ônibus tinha que atravessar uma pista de mão dupla, parou para esperar o sinal abrir para os pedestres e enquanto esperava soube, no fundo daquilo que chamavam de alma, mesmo sem ter certeza de que tinha uma, que Deus nunca o desejou pisando na terra, que seu nascimento foi um erro humano e então, seus olhos negros tentaram fazer brotar lágrimas em sua íris, tentaram lhe impor pena, mas ele não precisava de alto-piedade, nem da piedade de ninguém, porque sabia que estava por conta própria e que continuaria a se arriscar por entre os semáforos fechados para pedestres e aberto para os carros que voavam, distorcendo suas formas pela velocidade, e em um suspiro longo e alto desejou que sua vida não passasse de uma piada suja, contada por um velho bêbado depravado em um bar cheio de putas. Mas a vida tinha lhe reservado mais surpresas desagradáveis e mais confissões que um Padre pudesse suportar e manter-se dentro de sua sanidade sacerdotal, mental, humana.

O sinal finalmente abrira para os pedestres e os carros, até então desfocados, foram parando, tomando forma e dando forma a seus donos, que esperavam, esperavam, esperavam impacientes, querendo que o trânsito voltasse a funcionar – da mesma forma que o sangue precisa circular pelas artérias. Carlos seguiu em linha reta até o outro lado da pista, os carros eram acelerados como se desejassem passar por cima dele. Ele odiava quando os carros eram acelerados enquanto os sinais estavam abertos para os pedestres. Carlos achava aquilo uma forma de intimidação, de mostrar a superioridade idiota que quase todos têm dentro de seus automóveis. Ele continuava a seguir em linha reta, cabeça baixa, mas se roendo por dentro. O som dos motores. As pisadas no acelerador. Isso o incomodava muito, sempre incomodou, desde antes os pelos pubianos.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Teu coração não é teu


Teu coração não é teu


Me mandaram atirar uma pedra em meu desamor porque ela deixara de me amar. Não entendo o amor, não entendo essa sensação de posse que o amor nos faz sentir. Minha amada só deixou de me amar, por que deveria feri-la? Por que deveria machucar aquela linda flor?

Dizem que o amor verdadeiro deixa ir. Não queria deixar minha amada ir, mas não sou dono de suas pernas, nem mais de seu coração. Na verdade, não sou dono de nada, nem de minha própria vida... Não, não estou pensando em descartá-la, mas quem pensa que é dono da própria vida nunca saiu da redoma. 

Adeus meu amor, seja feliz, mas até minha dor passar, te desejo toda a infelicidade do mundo. Por quê? Porque te amo. 

Será isso amor?   


Marcos Martins.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

MANTENHA A LONGINQUIDADE


MANTENHA A LONGINQUIDADE


Não tenho a menor vontade de criar qualquer tipo de laço contigo.
Deixe a distância nos proteger do mal que possamos causar um ao outro. É melhor assim. Apenas idealize como eu seria. Como seria minha voz; meu sorriso; meu toque, quais meus vícios e a forma como acordo logo pela manhã – assim a magia não se extingue. 

Não quero ter contato com você, não quero ter que te cumprimentar sempre que estiver on-line – deixe que o vento sempre fique na posição contrária a nós, para que nossos odores não sejam percebidos um pelo outro, é bem melhor assim.

Não quero saber o que você faz; o que você gosta de comer ou se sorri com esses programas humorísticos que só me fazem chorar por achar que a graça morreu no mundo moderno.

Por favor, não tente me tocar se um dia nos cruzarmos em uma fila de banco, desvie o olhar, saia sem pagar a conta, que já deve estar vencida – quem paga suas contas em dia quando não se é do alto escalão?

Fique longe, apenas a idealizar, é melhor assim, pois nos sonhos não choramos como na vida real. Nos sonhos podemos acordar e sanar o pranto. Nos sonhos podemos tudo, pois o metafísico é soberbo e Morfeu é bem mais misericordioso que Fobetor. 
        

Fique onde está;
Fique longe;
Fique.           


Marcos Martins.

sábado, 8 de agosto de 2015

Tudo poderia ser


Tudo poderia ser


Tudo poderia ser mais simples, os verdejantes pastos poderiam ser mais verdes que os quadros de Jean Pierre de La Plata, mas não o são.

Tudo poderia fazer sentido para mim um dia, se Jean Pierre de La Plata me pintasse de azul turquesa em nu frontal.

A força que brota da terra, já capenga a tempos, não atrai mais os homens para o campo. E essa geração que grita nas ruas, nas esquinas, que praticamente urra ainda não se achou, mas deve continuar a caminhar, pois há bifurcações que devem chegar a algum lugar – seja Pasárgada ou Minas que não há mais. 

Ó! Quem dera eu pudesse me materializar numa peça da Broadway, que está em cartaz a mais de 20 anos e não pareça velha. Viveria como se nada mais importasse para mim ou para Jean Pierre de La Plata – ele que sempre pintou paisagens mortas de forma tão viva. 

Cada ato seria um tom de minha vida e meu ego se enxeria com os aplausos efusivos, com flores que me seriam jogadas no palco, aplausos e mais aplausos, beijos apaixonados, bocas com desejo de minha boca, mas tudo tem seu lado real e a realidade que me cerceia não me faz poder ter o desfrute de um dia de fábulas – um dia inteiro de fábulas. 

Se Jean Pierre de La Plata não fosse tão quixotesco, não teria receio de enfrentar moinhos de vento com ele sem armadura, mesmo sabendo que moinhos são moinhos e que homens são só homens – pó que nasce, pó que cai ao chão e não brota.

Tudo poderia ser mais simples, mas o bater de asas de uma borboleta pode fazer toda a diferença para quem está do outro lado do mundo e nem sonha que estou pensando nele.

Tudo poderia ser, no entanto, há um abismo entre o querer e o ser.


Marcos Martins.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Haraquiri sem corte


Haraquiri sem corte


Então um dia olhei para trás e vi o quão inexpressiva foi minha vida.  Muitos sorrisos falsos, muitas tapinhas nas costas - com punhais escondidos entre os dentes -, muita bebida destilada e dores por estar crescendo tão rápido.

Não, não posso conter meus genes, eles sempre vencerão no final. Ok, ok, todos passam por fazes ao longo da vida, mas... Não sei, não sei o que dizer – foi isso o que fiz a vida toda. E agora, perto desse fim, vejo que me arrependo de não ter feito coisas. Escolhi essa vida simples e inexpressiva, eu escolhi viver assim. Então por que há culpa? 

Escolhi não ter saído à noite anterior ao feriado; escolhi não ter plantando aquela árvore que estaria enorme hoje, nem quis escrever um livro, mesmo todos me falando que levava jeito para a coisa. Também não quis passar meus genes adiante. Não quis que alguém, vindo de meu sangue, pisasse essa terra cada vez mais infértil: – Egoísta! - Me acusaram. Nunca me deixaram falar que escolhi assim, desse jeito minha vida.

É bom acordar para uns, mas para outros é como estar no inferno, é como estar numa fila a mais de 5 horas e não ser atendido. Eu simplesmente voltaria para casa aceitando os fatos, mas algumas pessoas não aceitam a vida quando não é a que se idealiza - e isso faz doer -, faz inocentes sangrarem antes dos 30 anos e velhos terem medo de contar suas histórias.

Escrevi essas linhas tortas, não sei por quê. Mas por que temos que ter respostas para tudo? Quando não as temos – forjamos – É triste, muito triste. Mas o que é a tristeza? Não me importo em saber, essa é a verdade.

Não estou falando de morte e sim de vida, vida que vive sem querer ser oprimida, mas quem dita às regras para a minha vida, por vezes, me oprime, me amordaça, sufoca, cria-me sensações de impotência e prisão.    

Se sua vida pudesse ser uma canção, qual seria?    


Marcos Martins.

sábado, 1 de agosto de 2015

Hora de degustar sem parcimônia!



Estou pronto para cometer o crime. Vamos à leitura do livro "Amar é Crime", do Grande Marcelino Freire. Ganhei o livro no sorteio do Livre Opinião - Ideias em Debate.
Conheçam o site Livre Opinião!