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segunda-feira, 30 de junho de 2014

VIDA DE CÃO


VIDA DE CÃO


De lá o cachorro latia, latia e me olhava.
Eu que me sentia preso, ele que não estava;
Eu que estava triste, ele que me dizia o que era amar de verdade;
Eu que o alimentava, ele que me agradecia da forma mais verdadeira que se pode ser;
Eu que o acariciava, ele que de mim nada cobrava;
Eu que me sentia preso a essa existência, ele que o rabo abanava.

Sempre que o soltava, me via refletido em seus olhos castanhamente alegres – comecei a sentir inveja de sua vida bem tratada.

Eu que era um cão sem dono, no inferno quente do Recife, quis uma coleira antepulgas e não precisar mais correr trás de minha própria cauda.

Eu era um cão sem dono circulando pelos becos, vielas e as pontes impiedosas da Veneza brasileira, olhava as pessoas e via em seus olhos que ninguém se importava.

De lá ele me olhava; de cá, eu não mais me enxergava;
De lá ele acenava; de cá, eu cada vez mais me quebrava;
De lá ele sabia; de cá, eu também sentia que nem sempre as verdades são reais para quem não consegue seguir estradas.


Marcos Martins.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Esses olhos


Esses olhos


Não sou tão bom quanto me olham.
Esses olhos que me julgam;
que me machucam de forma silenciosa.

Não sou o messias que o mendigo julgou ser por ter lhe dado três moedas que dormiam no fundo de meu bolso;
Não sou o poeta que tem as verdades certas, para as vidas incertas - sou tão vazio quanto um verme -.

- Não. - Essa foi a primeira palavra que aprendi, antes mesmo de aprender a andar e a sorrir.

Não sou tão bom, melhor, não sou bom, sou uma fraude, uma fraude que precisa passar verdade, que precisa dizer aos outros o que ninguém mais consegue. E isso me causa ulceras.

Não quero que tenha pena de mim;
Não quero que tenha simpatia por mim, nem antipatia, nem nada, apenas me deixe fingir tentar. 

Mas sabe o que quero? 
Quero poder fazer Fabrícia sorrir; 
Quero poder tocar Fabrícia, sem quebra-la, e fazê-la sorrir para mim;
Quero que Fabrícia saia de minha mente, de minhas idealizações e passe a existir.

Não sou tão bom quanto me olham. 
Esses olhos que me seguem;
Esses olhos que, quando querem, me ignoram. 


Marcos Martins.

sábado, 21 de junho de 2014

Pela íris de uma criança



Pela íris de uma criança


O zumbido das abelhas faz: Zoommmm!
O B do barulho da bomba faz: Boommmm! 
E tudo explode de dentro para fora;
E todos ficam sem lares, chorando sem ter um lugar para chamar de seu, sem ter um lugar para depositar suas lágrimas, suas últimas esperanças.

A abelha faz zoom;
A bomba faz lágrimas;
Os governos fazem “runrun”, enquanto refugiados fazem covas rasas e pedem por dias sem boom.

E as crianças, essas, cortam suas asas de anjo e queimam-nas à noite para não morrerem de frio.

Marcos Martins.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Quanto custa seu tempo? (conto)





Quanto custa seu tempo?




Mais uma vez ele saia na correria de casa para não se atrasar no emprego. Pegava seu ônibus como à maioria das pessoas faziam, porém, sempre tinha um engarrafamento, um acidente ou uma manifestação impedindo que chegasse ao trabalho em tempo.

- Atrasado de novo? – dizia o chefe, olhando fixamente para o rolex, falsificado, que costuma ostentar. 

- Sinto muito chefe, foi o trânsito. 

- Se você saísse mais cedo de casa, talvez isso não acontecesse mais – lhe dizia, rispidamente, o patrão e ia para a sua sala ver pornografia até à hora do almoço. 

Para chegar ao emprego ele tomava um ônibus e o metrô. Se tudo corresse bem gastaria 35 minutos de ônibus e 19 minutos de metrô para chegar ao centro e 15 minutos de caminhada até chegar ao trabalho, mas nada correia bem e sempre se atrasava.

Começou a perceber, quando chegava à estação do metrô, que a hora que o relógio digital do seu lado da estação marcava sempre 2 minutos a mais, em relação ao sentido subúrbio. Se o relógio, no sentido subúrbio estivesse marcando 8h30 da manhã o no sentido cidade marcava 8h32 da manhã. Isso o deixava intrigado e até um pouco revoltado, pois sempre lhe dava a sensação de que nunca chegaria a tempo em seus compromissos.

Para não se atrasar mais resolveu comprar um relógio e acertar às horas de seu relógio pela hora do relógio da estação de metrô, dessa forma não se atrasaria.

Acordou cedo, sempre olhando para as horas de seu relógio, tomou seu banho; o café da manhã, ainda enrolado na toalha, terminou de se alimentar e foi por a roupa para ir trabalhar.

- Hoje não me atraso – pensou ao fechar às portas de sua casa e dirigir-se ao ponto de ônibus. 


Saiu meia hora antes do de costume, dessa forma tinha certeza absoluta que não se atrasaria, como se existissem certezas absolutas. Enfrentou mais um engarrafamento, mas dessa vez não se preocupou, pois ao olhar o relógio do pulso viu que tinha 15 minutos de sobra.

Chagando a estação do metrô, foi para o local de costume – entrava sempre no primeiro vagão -, esperar por seu transporte, mas ao olhar o relógio da estação notou que o relógio no sentido subúrbio marcava 7h., da manhã, enquanto o no sentido centro marcava 7h30. Suas pupilas delataram ao verem o relógio da estação e ao coparar com o relógio em seu pulso. Descobriu que os relógios marcavam à mesma hora.

- Como isso pôde acontecer? – pensou.

Agora só lhe restava o rolex, falso, do patrão não estar marcando à mesma hora que os relógios da estação e o que estava em seu pulso. 

- Atrasado novamente? – falou o patrão, antes de dar bom dia.

- Desculpe senhor Serafim – continuou tentando se justificar com o chefe – Sai bem sendo de casa, cheguei a comprar esse relógio para não me atrasar e não sei explicar como isso aconteceu se antes de chegar à estação de metrô, eu estava dentro do horário.

- Saia de casa mais cedo, faça como eu e todos os outros funcionários fazem – falou e foi logo para à sua sala atualizar seu perfil nas redes sociais. 

Ele sabia que não adiantava se justificar. Ninguém iria acreditar que o tempo estava contra ele. Pediu desculpas mais uma vez e prometeu que iria fazer de tudo para não se atrasar e que compensaria o atraso descontando de sua hora de almoço.

Na volta para casa, tomou o metrô sentido subúrbio e ao chegar à estação de seu desembarque sincronizou seu relógio e o do seu celular com o do metrô, sentido centro. Agora não tenho como me atrasar, disse para si.

Acordou duas horas mais cedo e saiu uma hora antes do de costumes. - Quero ver eu me atrasar agora - falou e foi quase que correndo tomar seu ônibus. Para a sua surpresa não tiveram engarrafamentos naquele dia.

Chegando à estação de metrô, desceu do ônibus quase correndo, pediu licença para passar na frente de algumas pessoas de outras nem licença pediu, até que alcançou sua plataforma.

- Não acredito! – gritou e todos na estação no sentido subúrbio e no sentido centro olharam para ele que, incrédulo, olhava freneticamente, hora para o relógio de pulso, hora para o relógio de seu celular, hora para o relógio da estação de metrô.

Os relógios marcavam 8h40 da amanhã, ele não entendia como isso podia ter acontecido se antes de entrar na estação ele estava dentro da hora, na verdade estava adiantado e tinha a certeza que chegaria primeiro que todos para dar expediente.

- Nunca vou chegar antes das 8 horas para começar a trabalhar – falou com os olhos marejados.

E assim se passaram dias, meses e anos, sempre correndo contra o tempo e o tempo vencendo-o no final. Sempre que pegava o metrô para ir a qualquer lugar, nunca conseguia chegar no horário marcado. Com o passar dos tempos sentia que não conseguia alcançar nada, sentia-se curto, cansado e passou a andar envergado. Sempre que via um relógio desviava olhar, passou a ter ojeriza pelos ladrões de tempo - foi assim que começou a se referia aos relógios -.

Passou a vagar por todas as estações de metrô, sempre em busca de um relógio que batesse com as horas de seu relógio de pulso e de seu celular, nunca encontro. Por mais que sincronizasse seus relógios com os da estação, era só descer do metro, entre uma estação e outra, que seus relógios ficavam adiantados e ele se sentia atrasado.

Parou na estação central e ficou olhado às horas passarem. Por lá viveu até que se tornou uma sombra e ninguém mais sentiu à sua falta, pois todos estavam sempre correndo contra o tempo para não chegarem atrasados em suas vidas.

Marcos Martins.

sábado, 14 de junho de 2014

Conto: O DIA EM QUE O RECIFE AFUNDOU


Foto google: Ponte da Boa vista (Recife)

O DIA EM QUE O RECIFE AFUNDOU


O DIA EM QUE O RECIFE AFUNDOU


Desde menino, Henrique tinha dois sonhos e um trauma. Queria ser astronauta era o primeiro e o segundo era poder destruir todas as pontes da cidade do Recife. Henrique tinha trauma de atravessar as temidas pontes da Veneza brasileira, já que, quando menino, caíra da ponte da Boa vista e quase morrera afogado, nas águas escuras do Rio Capibaribe. Ele tinha 7 anos na época e hoje, passados 23 anos, o pobre homem nunca conseguiu esquecer a sensação de afogamento e o gosto que o Rio deixou em sua garganta.

Sempre que passava por alguma das pontes do Recife, suas mãos gelavam, sentia tontura e náusea, chegava há levar 20 minutos na travessia, sempre segurando no parapeito das pontes, gélido.  Certa vez chegou a travar no meio da ponte Maurício de Nassau e ficou agarrado a estatua do poeta Joaquim Cardozo. Só saiu de lá com a ajuda do corpo de bombeiros, depois de mais de 2 horas de negociação.

Fosse a pé de carro ou de ônibus, não tinha importância, ter que cruzar qualquer uma das 49 pontes da cidade era um martírio. À medida que Henrique crescia, também crescia a vontade de explodir todas as pontes de sua capital, pois em sua cabeça o que sustentava o Recife - sem deixar que afundasse - eram as pontes. Mas explodir 49 pontes não é uma coisa fácil de fazer, então teve uma ideia brilhante em seus devaneios, teria apenas que destruir 12 das 49 construções que tanto embelezavam a Veneza do Nordeste, seriam as 12 pontes, os 12 pilares de sustentação e se assim o fizesse todo o centro iria submergir.

Henrique estudou por 5 anos quais pontes, de fato, sustentavam a capital pernambucana e concluiu que eram as: Princesa Isabel; 06 de Março; Duarte Coelho; Limoeiro; Boa Vista; Maurício de Nassau; Buarque de Macedo e a 12 de Setembro. Essas seriam os pilares de sustentação do Recife e se fossem postas a baixo, toda a cidade sucumbiria e sua angústia teria em fim um fim.

Conseguiu comprar muita dinamite, de uma forma que seria melhor ninguém ficar sabendo para não se complicarem, pois existem coisas que não se devem dar explicações, como por exemplo: receita de bolo ou verba de gabinete. Comprou alguns detonadores a controle remoto, alimentados por bateria de celular, em um site de compras on-line. Fez alguns testes no quintal de sua casa soltando rojões. A criançada ia ao delírio a cada rojão lançado, e Henrique só visualizava as pontes indo a baixo e sorria de forma aliviada.

Planejou tudo de forma metódica, esperou por um feriadão, para ter a certeza de que toda a cidade estaria vazia. Utilizou um barco para navegar pelo Capibaribe, para não levantar suspeita, e, aproveitando um feriado que caia numa segunda-feira, começou a por em prática seu plano perfeito. Durante três dias conseguiu instalar dinamite em todas as 12 pontes que escolhera. Foram três dias acordado a base de energéticos para dar conta de tudo.

Logo após colocar todos os explosivos, na segunda à noite, foi para o topo do prédio JK, dessa forma tinha a certeza de que teria uma visão privilegiada e assim poderia contemplar a concretização de seu sonho.

- Recife, eu te amo! – gritou do alto do prédio.

Esperou o sol nascer, porque queria que o astro rei presencia-se sua façanha. Recife acordava de forma sonolenta, os ônibus ainda não iniciavam seus percursos, passando lotados de gente enlatada, não se ouvia o som de motores, nem a fumaça de canos de escapes tentando fugir da cidade. Ele estava emocionado, suspirou e acionou os detonadores, fez um silêncio e então o som das explosões chegou a seus ouvidos, como que o canto de um passarinho dando-lhe "Bom dia", na janela de seu quarto. O som das explosões fora tão alto e violento que todos os moradores da região metropolitana puderem ouvir; para alguns parecia o som de trombetas celestiais anunciando o fim e o novo.

Uma a uma as pontes foram postas a baixo e após estalos agudos, o Recife começou a afundar, de forma sonolenta, da mesma forma que todos acordam pensando na luta que vão ter enfrentar.

Henrique chorou no topo do JK quando viu o cinema São Luiz afundando. E enquanto o Recife sucumbia uma preocupação surgiu - o fato de ter que molhar a roupa nova que havia comprado para a ocasião solene -. Lembrou que o barco havia ficado ancorado na ponte da Boa vista, onde tudo havia começado, onde sua vida havia ganhado um propósito e agora não mais existia: barco, pontes, Recife, propósito algum.        
   

Marcos Martins.






sexta-feira, 13 de junho de 2014

No mar, o tempo nada...



Mergulhado no mais profundo vazio, recuava ante o toque das gentes, o encostar das mãos e o cheiro do povaréu.
Daí, que partiu mar adentro, onde a natureza segue, na correnteza viva, mas sem gentes.[ou quase]
Quanto mais se afastava das multidões, mais sentia-se parte do oceano e satisfeito como jamais estivera.
Por lá ficou, navegando dias sem fim, no barco à deriva, alimentando-se de isolamento e de imensidão azul.

Até certa manhã, em que despertou novamente entediado com a própria existência, esbravejando para seu reflexo na água: “O que sou, afinal?”
O oceano parecia responder, com o barulho das ondas: nada! tudo! nada! tudo!...
Ciente de que onde quer que fosse, levaria gente com ele, sendo gente ele também, mergulhou até o fundo e num peixe se tornou.




Poema retirado do blog: http://contosdarosa.blogspot.com.br da poetisa Rose Mattos. Dê um ciber pulo lá e conheça mais dos textos dessa grande poetisa.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Mais alguns minicontos



Segunda chance

Todo homem sensato já brigou alguma fez na vida com Deus, mas só os inteligentes reconciliaram-se com Ele sem ser por medo.

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Vivemos no passado

As edições da revista playboy servem para nos mostrar que: mulheres modernas ainda possuem pentelhos.

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E não se fez novo

Uma porcelana colada sempre será uma porcelana modificada.

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Verdade

Toda verdade absoluta é prepotente. Toda prepotência gera uma verdade absoluta, é verdade.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

PROSTRAÇÃO EM UM SÉCULO QUE PASSA DESALENTANDO MINHAS FRÁGEIS CONVICÇÕES SOBRE TUDO E SOBRE O NADA


PROSTRAÇÃO EM UM SÉCULO QUE PASSA DESALENTANDO MINHAS FRÁGEIS CONVICÇÕES SOBRE TUDO E SOBRE O NADA


Não sei fazer caras e boca em frente ao espelho – nem sei mais como me portar em frente a esses ladrões de almas;

Não sei sorrir com naturalidade em fotos – o natural já se foi, hoje, enfeito minha casa com flores artificiais;

Não sei ficar quieto enquanto vejo o mundo explodir. Zapeio em busca da terra prometida de um deus que é tão homem quanto aquele cara que ensinava o caminho do céu, mas não sabia ir.

O século XXI não mais me fascina, nem com a criação da internet 4 G. Hoje, os homens são mais prisioneiros do tempo do que tempos atrás.

Não, não gosto de receber os raios solares, eles me deixam queimados e desidratado;

Não, não rezo mais, na verdade tenho vergonha de pedir, de revelar meus pedidos egoístas ao infinito.

Ouço uma canção no rádio que fala de amores desfeitos, me sinto bem com a letra da musica, e a canção, com todas as suas notas dissonantes e escalas menores, me enche de uma melancolia salutar.

Leio um livro com poesias, na verdade finjo ler.

Não, não tenho mais a esperança que depois do firmamento haja algo a mais, na verdade nem mais firmamento deve existir, pois o home a tudo cobiça, conquista, destrói.


Marcos Martins.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Conto: NOVA ORDEM




NOVA ORDEM


- Sr. Pedro Augusto dos Santos, o Senhor foi condenado a 35 anos de prisão, pelos crimes cometidos por seu filho, Carlos Silva dos Santos, e deve cumprir, em regime fechado, sua sentença – dizia o Juiz do tribunal da Justiça Maior e bateu o martelo finalizando a sessão.

Desde que crimes bárbaros, cometidos por menores, começaram a aumentar no País, os três poderes mais a sociedade civil decidiram que todo menor de 18 anos, não importando sua idade inferior a maior idade, que cometesse crime contra alguém ou patrimônio público e privado, os responsáveis pelos mesmos deveriam responder judicialmente pelos crimes cometidos pelos menores e cumprir as penas aplicadas em seus lugares.

Carlos tinha 16 anos, era um jovem de classe média, tinha olhos verdes penetrantes e os dentes incisivos centrais superiores separados, que davam um ar de ingenuidade ao garoto, mas de ingênuo ele não tinha nem o nome. Carlos havia matado duas senhoras, irmãs gêmeas, ao tentar roubar a bolsa de uma delas. As irmãs tinham 70 anos. Carlos era violento e sabia que a justiça não poderia alcançar seus atos de barbárie, e na tentativa de assaltar as senhoras, quebrou o braço da que segurava o objeto de seu desejo – uma bolsa Louis Vuitton com faturas de cartão para pagar - e acabou esfaqueando as irmãs até vê-las morrerem em seus pés. Seu Pai, o Senhor Pedro, de 55 anos cumpriria, em regime fechado, a pena no lugar do filho. Essa era a lei.

- Meu Deus, onde foi que eu errei! – gritava em tom de súplica o pai de Carlos, com os braços erguidos, enquanto policiais o tiravam do tribunal para levarem o pobre homem ao presídio.

Dona Eunice, esposa do senhor Pedro, chorava desconsolada agarrada ao braço do filho que apenas olhava indiferente o desespero dos pais.

O tribunal estava cheio, em sua maioria por pessoas com mais de 40 anos, todos com seus filhos a tiracolo. Alguns avós levavam seus netinhos para que ficassem horrorizados com a dor de um pai e assim não cometessem crimes, mas nada surtia efeito porque as crianças pareciam se deleitarem com toda aquela situação. Nos corredores do tribunal era normal verem crianças e adolescentes fazendo apostas para tentarem acertar quantos anos o pai, mãe ou responsável pelo menor receberia. Alguns adolescentes iam fumar no banheiro do tribunal e quando algum policial entrava no sanitário para interpela-las, logo se viam como vítimas, e protegidas pela lei diziam aos policiais, como se estivessem num filme gringo: “Toque em mim e acabo com a tua vida profissional, Tira!”. Os policiais baixavam a cabeça e saiam desconsolados do WC sem lavarem as mãos.

A sociedade tinha mudado, os adolescentes ditavam as regras agora, eles podiam votar; prepararem-se para fazer mudança de sexo, se emancipar, eleger o presidente da república, mas não eram capazes de responder por atos violentos, pois eram tidos como “incapazes de discernir o certo do errado”.

Nos últimos 15 anos as cadeias do País estavam lotadas de pais, avós e pessoas responsáveis por menores, todos eram culpados pelos atos arbitrários dos salvaguardados. Cada vez mais era raro ver pessoas com mais de trinta anos andando pelas ruas, quando apareciam, andavam de ombros caídos e com medo de cruzarem com algum menor de idade, pois eram sempre humilhados e coagidos por eles. Nem nos shoppings se sentiam a salvos. Curiosamente esses adultos não haviam desistido de ter filhos e continuavam a povoar o País com seus rebentos. Foi então que algo aconteceu - A ovelha trucidou o lobo -.    


***


- Vamos cometer um ato que entrara para a história – falava Lucas, um garoto de 15 anos, enquanto recarregava duas pistolas - PT 24/7 training II, azuis.

Luquinhas, como era conhecido, era chefe de uma gangue - A Gangue do Dente de Leite -, como era conhecida. Além do garoto mais 12 pessoas faziam parte da gangue, crianças entre 13 e 17 anos. Luquinhas era o mais violento de todos, gostava de torturar suas vítimas antes de assaltá-las. O que mais o orgulhava era nunca ter sido pego. Seu pai, era um homem doente, sofria de problemas renais e tinha diabetes, era um senhor de 60 anos e caso o filho fosse pego o pobre diabo iria para a prisão de todo o jeito. Adultos não tinham regalias, nem se fossem pessoas doentes. 

Luquinhas não era um garoto forte, nunca foi um valentão na escola, nem era tão alto para impor medo a alguém, tinha um metro e sessenta e oito e pesava 52 quilos. Mas com uma arma em punho se transformava num gigante, um matador sem piedade. Para ser contraditório tinha tatuado nos antebraços a palavra “Misericórdia”, mas de misericordioso não tinha nada.

Luquinha e sua gangue tinham um verdadeiro arsenal, eram pistolas, fuzis e rifles de longa distância. Todas as armas tinham uma peculiaridade, eram coloridas com cores fortes e vivas. Tinham armas azuis, vermelhas, laranjas, amarelas (pareciam um arsenal de MMS) e com adesivos de personagens infantis em seus cabos finalizavam os enfeites. “Ô Pai”, como gostava de ser chamado Luquinhas, tinha adesivos do Boby Esponja e da estrela do mar Patrick nos cabos de suas pistolas.


***


- O plano é o seguinte – continuou - vamos matar o presidente do Supremo Tribunal Maior, o ministro da justiça Justa e o presidente da República de Todos.

À medida que “Ô Pai” ia revelando seus planos, todos os outros escutavam como se estivessem hipnotizados pela voz de Luquinhas, que gesticulando com uma arma na mão ia ministrando seu plano, parecia um maestro regendo a Nona sinfonia de Beethoven. E assim, todos os adolescentes começaram a carregar suas armas, como se ao fundo a musicas de Beethoven estivesse mesmo sendo tocada e dando ritmo às balas, que eram colocas em armas exclusivas das forças armadas. Outros cuidavam dos mantimentos: toddynhos sabor tradicional e napolitano; iogurte sabor morango, salada de frutas e chocolate, alguns pacotes de biscoito recheado e até papinhas de nenê estavam levando, pois não sabiam se iriam demorar muito ou não por lá.

Antes de seguirem viagem ouve uma despedida, Adriano, um dos integrantes do grupo acabara de completar 18 anos – Não tinha pelos no peito, mas judicialmente era um homem -. Todos choraram abraçados e comemoraram com brigadeiro, bolo e refrigerante, apenas Adriano tomou cerveja, pois agora já podia beber e tirar sua habilitação. Adriano voltou para casa, triste, perdido e com os mesmos ombros caídos que andavam todos os adultos. Seus pais agradeceram a Deus o filho ter completado maior idade sem que eles tivessem ido para alguma prisão.

Lágrimas enxugadas, armas carregas e barriguinhas cheias, partiram para a jornada, para “Ô berçário”, como era conhecida a Capital do País por todos os menores da nação.

- Pegaremos o juiz, o ministro e o presidente, nenhum adulto vai ousar chegar perto de nós – falava confiante - E assim que os tivermos, os executaremos em cadeia Nacional e mostraremos quem é que manda realmente - esse era o plano, tão simples quanto ser criança, assim pensava e tinha certeza Luquinhas.

Como os garotos não eram habilitados tiveram que sequestrar o motorista de uma van escolar, que passava ali perto, e assim seguirem para “Ô berçário”. Eram 3 horas de viajem e todos puderam cantar antigas canções que aprenderam na escola, quando pequenos, como: marcha soldado, pirulito que bate bate, samba lelê, capelinha de melão, ciranda ciradinha, Pai Francisco, entre outras. Não cantaram escravos de Jó, pois achavam politicamente incorreto, nem atirei o pau no gato, por fazer com que Luquinhas se lembrasse de seu gato chamado Mimoso, que havia sido morto, atropelado por um bêbado que nunca foi pego.

Finalmente chegaram ao Berçário no final da tarde, mas antes de descerem da van, amarraram o motorista no acento, com as mãos presas ao volante, descerem e jogaram gasolina no veículo, no entanto ficaram frustrados porque o motorista não gritou enquanto ardia em chamas. 

Agora estavam prontos para o que desse e viesse. Morrer jovem não era uma maldição e sim uma benção para eles.


***


Seguiam a passos largos, rápidos e seguros, entraram pela porta da frente do Congresso Nacional, que estava quase vazio não fosse o pessoal da limpeza (era uma sexta-feira).

- Música! – gritou Laquinhas para um dos garotos que levava uma caixa de som presa às costas, ele e mais dois garotos transportavam as caixas como se fossem mochilas escolares, e no último volume adentraram o Congresso com a Nona sinfonia de Beethoven ao fundo.

Para a surpresa dos garotos e garotas que ali estavam, encontraram um Congresso deixado às moscas. Luquinhas cuidou logo de mandar um continuo chamar o Supremo Tribunal Maior, ministro da justiça Justa e o presidente da República de Todos.

Câmeras foram posicionadas para que assim que os chefes chegassem tudo fosse mostrado à Nação. Luquinhas estava sentado na cadeira da Presidência quando as autoridades chegaram e assim que viram todos aqueles adolescentes, cuidaram logo de curvar os ombros, o juiz Tribunal Maior até que tentou manter os ombros erguidos, mas foi persuadido a baixa-los com o cano de um fuzil tocando suas costas.

Os três foram colocados atrás da cadeira que Luquinhas estava sentado, que de pronto mandou pararem com a música e a ligarem as câmeras.

Todas as televisões do País interromperam a programação, pois foram informados que o presidente da República de Todos iria fazer um pronunciamento urgente a Nação e assim o fizeram, logo que o brasão de república apareceu e o hino nacional começou a ser executado toda a nação parou para ouvir o presidente fazer seu pronunciamento. Mas para a surpresa geral da Nação quem apareceu em primeiro plano foi um garoto com duas pistolas coloridas em punho, de pé, erguendo os dedos anelares das duas mãos e estalando o dedo para a toda a Nação, e rindo, rindo sinicamente adentrou a casa de todos. No mesmo instante todos os adultos, absolutamente todos que assistiam TV curvaram os ombros e olhavam, timidamente, para os aparelhos.

Luquinhas sentou-se, deixou as pistolas em cima da mesa e acomodou-se como um imperador. Por trás dele, três figuras dimunitas, cabisbaixas, ombros ainda mais curvados que os de toda a Nação, aguardavam o que “Ô Pai” tinha a dizer.

- Me chamo Luquinhas, mas todos me conhecem pelo apelido de “Ô Pai”, e é dessa forma que gosto de ser chamado, que fique claro. – continuou – Vamos ao que interessa, até porque não quero ficar aqui até completar maior idade. – todos da gangue riram debochadamente.

- Somos a Gangue do Dente de Leite e queremos falar para todos vocês que, a partir de hoje nós é quem mandamos no País, nós faremos às leis, criaremos uma Nova Ordem, onde a injustiça dos mais velhos não poderá nos tocar. 

- Hoje, começamos uma Nova Era. – dizia “Ô Pai” erguendo suas armas - Toda pessoa maior de 18 anos só poderá fazer trabalhos braçais e servirão a seus filhos como bons escravos que devem ser. Qualquer ato de desobediência será passível de pena de morte e tortura, não exatamente nessa ordem, se é que me entendem – falava e ria sinicamente, levantando a sobrancelha direita para dar um ar de verdade a tudo o que dizia -. Os velhos, ao completaram 60 anos, serão jogados em poços de piche, pois todos sabem que velho não serve para nada, além de bufa, é claro. Todo adulto terá que dar seu lugar no coletivo para os mais jovens, mas terão que fazer uma reverência e só depois cederem o lugar. E isso é apenas o começo.

- Nós somos o futuro, preparem-se para dias de terror – todos da gangue foram à alegria extrema, disparavam suas armas dentro do Congresso enquanto “Ô Pai” se sentia com imunidade diplomática.

Ô Pai levanta-se, coloca as três autoridades de joelhos e as executa a sangue frio, com tiros em suas cabeças, dizia que isso mostrava o quão misericordioso ele era, pois foram mortes de forma rápida e limpa.

- Música! - Grita Ô Pai, que logo é atendido com a música “Geração Coca-Cola”, da Legião Urbana, e dessa forma a transmissão é encerrada.


***


A Gangue do Dente de Leite voltou para casa e por três meses as ordens dadas pelo “Ô Pai” foram seguidas à risca. Pessoas mais velhas davam lugar aos menores de 18 anos em coletivos, pessoas com mais de 60 anos foram jogadas em poços de piche, adultos eram tratados como escravos, não só para seus filhos, mas para toda criança menor de 18 anos. Foi então que algo aconteceu - A ovelha virou lobo -. 

Estava “Ô Pai” a passear por um shopping quando viu Adriano trabalhando como garçom em uma lanchonete, de pronto foi à lanchonete para ser servido pelo ex-integrante de sua gangue, Adriano chegou com o cardápio e achou que fosse ser bem tratado pelo antigo líder, mas o que aconteceu foi que o pai não reconheceu mais seu filho.

- Vai querer o que, Luquinhas? – perguntou Adriano.

- Um milk shake de baunilha, duas porções de batata frita e um sanduiche de queijo – falou sem nem olhar para Adriano.

Adriano saiu triste e foi levar o pedido de Luquinhas. Ao voltar com a bandeja com o pedido do antigo mentor, Adriano nota que Luquinhas estava com um sorriso estranho, o mesmo sorriso doentio que tinha quando queria fazer mal a alguém.

- Aqui está o seu pedido, Luquin... 

- Luquinhas? Você quer morrer, seu idiota? Meu nome é Ô Pai, Ô pai! Seu retardado! – esbravejou levantando e apontando o dedo na cara de Adriano.

- Senhor, me desculpe – dizia Adriano com os ombros caídos.

Ô Pai não aceitou as desculpas e começou com os atos de humilhação pública. Pegou o copo com o milk shake, derramou no cabeça de Adriano, todos na lanchonete, em sua maioria cheia de menores de idade, riram de Adriano, alguns adultos que estavam ali, apenas baixavam suas cabeças e rezavam para que a barbárie só ficasse no pobre atendente.

- Você é doido? Melou meu tênis com esse milk shake de segunda! Quero que limpe; com a língua – falou erguendo o tênis Luquinhas.
Adriano ainda tentou relutar, mas foi esbofeteado no rosto por Luquinhas. Adriano o olhou com ódio, com o mesmo ódio que se sente ao descobrir que alguém matou um bebê.

- O que você vai fazer seu idiota? – perguntou Luquinhas com deboche.

- Vou limpar seu tênis – respondeu Adriano se abaixando.

Ao se ajoelhar para limpar o tênis com a boca, Adriano é surpreendido com um chute, de baixo para cima, dado por Luquinhas. Todas as crianças e adolescentes caíram na gargalhada, os adultos se encolhiam cada vez mais nas cadeiras da lanchonete.

- Agora meu tênis está sujo de sangue desse adulto miserável! – esbravejava Luquinhas, enquanto Adriano rolava no chão de dor.     

Adriano examinou a boca, sentiu a falta de um dente da frente, e o gosto de sangue na garganta o modificou, o fez sentir-se oprimido, o mesmo ser que ele e todos os menores oprimiram um dia. Adriano sentiu-se como cada um daqueles adultos que estavam ali, impotentes, e num ato inesperado saltou de uma vez só em cima de Luquinhas, agarrando-lhe pelo pescoço e o estrangulando até a morte. As crianças e os adolescentes ficaram chocados e pela primeira vez, em muito tempo, os adultos ergueram os ombros e olharam sem medo para todos os menores que estavam ali presentes.                                   

Adriano foi capa de todos os jornais, vários noticiários de TV, rádio e redes sociais falavam sobre o que ele havia feito, mas foi preso, julgado e condenado a 20 anos de prisão pelo artigo 121, enquadrado em crime de homicídio. Adriano não teve direito a regime semiaberto e iria cumprir toda a sua pena em regime fechado.
     
E depois de longos anos Adriano foi o primeiro adulto julgado e condenado por ter cometido um crime e  que adentrou numa prisão sem ter sido preso pelos atos cometido por uma pessoa menor de idade. E todos os detentos os saudaram, e todos gritavam seu nome na cadeia, e todos o trataram como um herói. Adriano apenas ria, ria e ria sem seu dente da frente, ria com total percepção de seus atos.


Marcos Martins.