CAPÍTULO
I
DIÁRIO
DE LÁZARO
17
de outubro de um ano qualquer
Decidi
não colocar mais datas especificas em meus diários, não sei mais se tudo isso é
real, só temo que todo esse mundo que vivo seja o fruto da imaginação de uma
criança mimada. Não suportaria saber que não sou real, ou melhor, que só sou
real na mente de uma criança, ou na mente de um escritor, ou de um cara que
está passando na rua, dentro de um ônibus, tirando meleca e pensado que eu
seria a projeção dele num mundo ideal para ele, não para mim.
Quem não já teve a sensação de estar sendo observado? Mas
ninguém tem essa sensação mais que eu. Tudo começou depois do acidente que
vitimou meus pais, até hoje meu Tio diz que é uma espécie de trauma causada
pela “não aceitação dos fatos”, mas eu aceito a morte e o que a vida nos dá,
porque não temos escolhas – achamos que temos escolhas, mas não temos. Quero
tanto estar enganado.
Meus amigos dizem que sou muito velho para minha idade, é
que quando você descobre que a morte existe algo muda em você. Não falo isso
com orgulho, gostaria muito de me sentir um cara de vinte e dois anos que se
mistura facilmente a/e na multidão, mas, não sei o porquê, me sinto às vezes um
cara com cinquenta anos, acho que é por causa da responsabilidade que tive de
ter muito cedo (ainda bem que minha libido é de um rapaz de vinte, se não
estava perdido)... Mas o que tem de mais gostar de Goehte, Platão ou Nietzsche?
Acho que só sou respeitado por meus amigos por curtir as varias vertentes do Rock
and Roll... “Smells Like Teen Spirit”, como diria o Cobain. Só não tenho armas,
mas tenho amigos e isso me basta, pois além dos amigos, tenho Ainá e isso realmente
me basta.
Minha
vida é boa, não tenho do que reclamar... Certo, certo, meus pais morreram, mas
meu Tio Paulo sempre foi como um pai e uma mãe para mim – acho que ele se sente
um pouco responsável pela morte deles, talvez pelo fato do carro ter sido o
dele. Meu Tio é o irmão mais velho de minha mãe e agora ele não tem mais uma
irmã mais nova para se preocupar, tem um sobrinho filho.
Ainda
bem que tenho Tio Paulo, graças a ele tenho um emprego, faço faculdade e tenho
uma família. O que mais um homem pode querer? A verdade, talvez. “Só sei que
sei que nada sei”, não é isso?
***
O
celular me desperta com uma música suave, são 06h da manhã, tenho que levantar
e ir trabalhar, não é porque meu Tio é o dono do negócio que posso me atrasar, mas
antes de meu senso de responsabilidade despertar completamente, vou tateando
com os dedos o celular, até achar a opção soneca para poder dormir por mais
cinco minutos.
– Lázaro,
vamos nos atrasar, rapaz! – ouço os gritos de Tio Paulo, impaciente, na escada
que dá para a parte de cima onde ficam os quartos. Como sempre o som de sua voz
de barítono sobe de forma veloz e invade meu quarto, adentra se infiltrando por
baixo do meu coberto e explode em meu rosto, até esmagar meus tímpanos. “Vamos
lá, cara, acorda e vai viver!”, digo para mim em pensamento, numa tentativa de
criar animo para mais um dia de labuta.
Está
para nascer homem mais pontual que meu Tio, nem um Britânico é tão preocupado
com as horas quanto ele. Às vezes isso é um saco, mas todos têm que acordar,
não importa se à meia noite ou ao meio dia, não importa se quando criança ou
depois dos setenta.
– Lázaro!
Olha a hora, menino!
– Já tô
indo, Tio! – digo ainda um pouco sonolento.
Tomo
ar, me espreguiço todo, até sentir o cobertor fora de meu corpo. A frieza da
manhã toca minha pele, posso sentir os poucos pelos do braço se esticando, como
que se espreguiçando também, mas é só vontade de voltar a se aquecer.
– Vou
me arrumar, Tio! – grito tentando acalmar seu espírito impaciente.
– Vê
se vai logo, garoto.
Em dez
minutos já estou pronto, a água fria do chuveiro me ajuda a despertar
completamente e o tempo começa a deixar de ser meu inimigo. Desço correndo as
escadas, com minha mochila azul nas costas e a cara menos inchada de sono. Começamos
o ritual do café da manhã: suco de laranja, café preto, leite desnatado em cima
da mesa, pão assado, queijo de coalho, iogurte e o jornal estampando como
manchete mais um atentando a bomba. Tio Paulo começa a falar sobre a loja e eu
calado como sempre. Não sou muito de falar logo quando acordo, sou meio
lisérgico pela manhã, confesso; é como se eu tivesse que ter um tempo para me
organizar mentalmente. Ás vezes fico a olhar meu Tio falando e é como se tudo
estivesse em câmera lenta, sua boca, as gotículas de saliva saindo, o piscar
dos olhos, tudo em slow motion.
Ao
terminar o café nos deparamos com os pratos da janta de ontem e como temos medo
que um inspetor da vigilância sanitária bata a nossa porta, porque algum
vizinho denunciou o mau cheiro, ou até mesmo que um policial surja, por achar
que temos cadáveres dentro de casa, lavamos os pratos antes de sairmos para
trabalhar.
Essa
era a nossa rotina toda a manhã, exceto nos feriados. Tudo pronto, casa
arrumada, que pelo fato de morarem dois homens ali não deixava a desejar no
quesito arrumação. Saio na frente, sempre apresando, não por estar atrasado,
mas pelo meu Tio ficar falando para eu não me atrasar, é como se meu corpo e
mente já estivessem condicionados a isso, então prefiro ir na frente, entrar no carro e ficar esperando por ele.
Ao ver
Tio Paulo fechando a porta de casa, lembro que esqueci meu trabalho de
faculdade no quarto – faço história antes que perguntem –, desço do carro para
ir pegá-lo, tenho que terminar esse trabalho ainda hoje.
– Tio,
me espera no carro, tenho que voltar e pegar um trabalho.
– Olha
a hora, menino!
– É jogo rápido – falo já abrindo a porta da frente de
casa com minha chave.
– Você
não terminou esse trabalho, Lázaro?
– Só
faltam algumas linhas, termino no trabalho – respondo e vou entrando em casa
para pegar meu pen drive, onde o
trabalho está adormecidamente guardado.
– Lugar
de trabalho é de trabalhar, garoto – me adverte meu Tio, se dirigindo ao carro.
–
Corta essa, patrão – respondo sorrindo e entro em casa.
Ao
entrar em casa sinto uma presença estranha, vejo um vulto sobindo às escadas em
direção aos quartos e me assusto. “Acho que Gilberto Freyre iria gostar de ver
isso”, penso no primeiro momento e dou um sorriso tímido. Aquela visão só poderia
ser minha mente me pregando uma peça, ainda estava com sono, tinha dormido
tarde na noite anterior, só podia ser uma sombra deslocada pelo sol – o sol da
manhã era todo em cima de nossa casa – ou ainda a sombra de um balão
meteorológico. Mas o que um balão meteorológico estaria fazendo em nossa casa?
Entrei
um tanto quanto relutante, mas tinha que ir até meu quarto, não tinha outro
jeito. Pensei em chamar Tio Paulo, mas aquele pensamente soou ridículo em meu
consciente. Fui cautelosamente em direção da escada, toquei o corrimão com a
mão direita – estava frio –, olho para cima, ela parecia bem maior e mais
perigosa agora. Tomo coragem e levo o pé direito até o primeiro degrau. “Vamos
logo, Lázaro! Olha a hora, rapaz!”, grita meu Tio de dentro do carro e
buzinando freneticamente, aquilo me desconcerta, me tremo todo por dentro e por
fora e o pé, que antes seguia sabendo onde iria pousar, aterrissa de forma
desconcertante, meio para fora, meio para dentro do primeiro degrau. “Ai
Jesus!”, falo pondo a mão no peito, sentido os batimentos cardíacos acelerados,
parecia à marcha de cem cavalos rumo a uma batalha, se não estivesse com a mão
segurando o corrimão, acho que teria caído tamanho o susto que sentira.
A
situação me faz ter o impulso de subir as escadas sem ter tempo para pensar no
que eu poderia encontrar lá em cima – o medo por vezes te impõe à necessidade
da coragem –, mas ao chegar ao meio da escada paro e o receio volta a se
apossar de meu corpo. “Será que é um gato? Será um fantasma? Ou seria um
ladrão?”, penso. “Não, não é ninguém, nem nada, é apenas o fruto de minha
imaginação”, falo para mim tentando convencer de que realmente não é nada. Mas
se fosse alguém, tinha que tentar dar-lhe um susto e assim poder rendê-lo... Só
torcia para que ele não estivesse armado e que meu esfíncter aguentasse o
tranco.
Finalmente
subo e olho cautelosamente para o corredor, branco e úmido; por uns instantes
tenho a impressão de velo esticando-se para dificultar minha ida até o quarto,
passo a mão esquerda nos olhos, sem desgrudar a direita do corrimão, como que
para limpar à vista, a sensação de profundidade desaparece e a realidade
aparentemente surgir. Finalmente sigo e não vejo ninguém, mas um calafrio me
toma, como se tivesse alguém em minhas costas, me olhando, não ouso olhar para
trás, não até conseguir sentir a maçaneta da porta de meu quarto em minhas mãos.
A porta do quarto estava fechada, da forma que a havia deixado antes de descer,
logo, ninguém poderia ter entrado nele. Convenço-me de que não foi nada, mas
mesmo assim meu senso de sobrevivência me mantém cauteloso e alerta. Entro no
quarto. Nada de anormal. Tudo estava como deveria estar: cama por fazer, as
miniaturas dos planetas do sistema solar pendurados logo à cima de minha cama,
minha coleção de Star Wars e Star Trek convivendo pacificamente,
juntos com o Batman, Coringa, Hulk, Homem de Ferro e o macaco César. Olho todo
o quarto, dando um giro de 360 graus, a confirmação da janela do quarto fechada
demonstra que ninguém havia maculado meu santuário... E lá estava ele, meu pen drive, em cima da escrivaninha onde
o havia deixado ontem, sendo protegido pela miniatura do senhor Spock, que fazia
sua saudação vulcana para mim.
Pego o
pen drive, o coloco em minha mochila,
ainda penso em trocar de tênis, mas não havia tempo. Ao sair do quarto dou as
últimas recomendações ao senhor Spock, mas logo tenho as palavras interrompidas
por um barulho estranho, um som meio grave, meio agudo que se formava dentro do
quarto, não era o som de algo quebrando, mas era forte e quando dei por mim a
janela que, outrora se encontrava fecha, agora estava aberta. Um arrepio agudo,
quase doloroso, foi percorrendo meu corpo de forma alucinante, senti um
calafrio na alma, daqueles que deixam em pé até os pelinhos dos dedos dos pés.
Sai do quarto feito louco, mas antes de sair, de bater a porta com tamanha
força que fez com que dois quadros de paisagens pintados a óleo e uma réplica
do quadro de Salvador Dali “O sono” estremeceram, senti um cheiro familiar.
Não
sei se gritei ou não gritei enquanto saía do quarto e passava em disparada pelo
corredor. A escada, dessa vez, pareceu-me menor e a desci quase que com uma
única passada de pernas. E ao chegar à porta da sala pude ter a certeza de que alcancei
a velocidade de trezentos mil quilômetros por segundo e que a teoria da
relatividade não era mais uma teoria e sim uma realidade para mim.
Ao
sair de casa, minhas mãos tremiam, quase não consegui trancar a porta, tentava
por a chave na fechadura, mas com uma única mão era impossível, tive que mandar
a mão direita segurar meu pulso para que a esquerda encontrasse o buraco da
fechadura e assim eu pudesse sair dali o mais rápido possível.
Ao
deixar a casa, olhei instintivamente para cima e pude perceber que tinha algo em
cima da casa, no telhado, era a mesma sombra que subiu pela escada quando
entrei em casa, ainda me estiquei todo para ver o que poderia ser, torcia para
que fosse um gato, ou um pássaro, ou um gato tentando caçar um pássaro, foi então
que Tio Paulo apertou a buzina com força e graças a Deus eu tinha um intestino
forte, se não nós teríamos nos atrasado pra vale.
(...)
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